segunda-feira, 19 de abril de 2010

GILBERTO FREYRE VERSUS O REVISIONISMO DE FLORESTAN FERNANDES: A DOCILIDADE E O RACISMO NAS RELAÇÕES SOCIAIS BRASILEIRA

Por: José do Egito N. Pereira.

Introdução
O presente trabalho foi construído durante a escrita de nossa dissertação de mestrado, intitulada “A Escola Moderna e a Des/Construção do Negro: por novos olhares históricos”, quando tivemos a oportunidade de se debruçarmos sobre os textos de Gilberto Freyre e do Grupo de pesquisadores da USP, coordenados sob a orientação do professor Florestan Fernandes. Durante a pesquisa, ficaram claras as disparidades nas maneiras de ver e dizer sobre o negro brasileiro. Gilberto Freyre desenvolveu um discurso em que predominava a positividade da presença negra na formação social brasileira, além da suavidade nas relações sociais entre o elemento branco com o negro, na Casa Grande & Senzala. A obra freyreana é voltada para a formação social brasileira. Nela, Freyre procurou transformar a negatividade vista na miscigenação, corporificada no mulato, em algo positivo. Sua “Casa Grande & Senzala” rompeu com os preconceitos anteriores ao assumir nossa mulatidade como algo benevolente.
Já o Grupo de Florestan Fernandes, apontou como idílicas tais conclusões freyreana, posto que, em vez de democracia racial, encontraram no Brasil, indícios de descriminação, e, em vez de harmonia, perceberam o preconceito na história da “democracia racial brasileira”. Eles concluíram, também, a existência particular de um racismo no Brasil: um preconceito de não ter preconceito; este preconceito se revela na forma do particular, do íntimo, do privado, porque publicamente ele é silenciado. As conclusões de Florestan Fernandes afirmam que ninguém nega que exista racismo no Brasil, mas sua prática é sempre atribuída a outros. Além disso, o problema parece ser o de afirmar oficialmente o preconceito, e não o de reconhecê-lo na intimidade. Para esse Sociólogo, a escravidão suave é um mito cruel a ser destruído falar em suavidade e ternura nas relações senhor/escravo é ir cinicamente contra os fatos. Entretanto, devemos compreender que a história é filha do seu tempo, e que tais divergências teóricas sintetizam a escrita da história sendo elaborada a partir de diferentes lugares sociais (Michel de Certeau), ou a partir de diferentes enunciados e discursos (Michel Foucault).

1. O pensamento de Freyre sobre as relações entre o branco e o negro: a docilidade social na Casa Grande & Senzala

A produção historiográfica vinculada ao IHGB desprezava a participação do negro enquanto agente social na sociedade brasileira. Para esses pesquisadores da identidade brasileira, o negro representava a parte não civilizada da emergente nação. Mas, na primeira metade do século XX emergiu no Brasil um leque de discursos (culturais e político) que procurou demonstrar a nossa docilidade social, fruto da mescla de nossas três raças que culminou na sociedade brasileira. Freyre adere a esta rede discursiva e vai discorrer sobre a suavidade em nossas relações sociais a partir do seu próprio e saudoso mundo: o mundo da casa-grande e senzala, dos sobrados e mucambos.
A obra freyreana é voltada para a formação social brasileira. Nela, Freyre procurou transformar a negatividade vista na miscigenação, corporificada no mulato, em algo positivo. Sua “Casa Grande & Senzala” rompeu com os preconceitos anteriores ao assumir nossa mulatidade como algo benevolente. Freyre diluiu os conflitos rácio-sociais num adocicado e idílico paraíso onde senhores e escravos viviam na mais cordial convivência possibilitada pelo cruzamento entre a malevolência e sensualidade da mulher africana e indígena com uma suposta e inata cordialidade e ausência de racismo do homem português.
Apresentações à parte, vejam o que Freyre escreveu sobre o papel do negro na sociedade escravista. Em “Casa Grande & Senzala”, ele defendeu a miscigenação como algo positivo, e em momento algum escondeu a presença negra como uma das raças fundadoras do povo brasileiro.
Todo brasileiro, mesmo alvo, de cabelo louro, traz na alma, quando não na alma e no corpo... a influência direta ou vaga e remota, do africano ... Em tudo que é expressão sincera de vida, trazemos quase todos a marca da influencia negra .
Freyre explica como a presença e a influência negra pode ser sentida na vida do homem branco, e ao mesmo tempo, lança as bases de sua democracia racial, ao relatar que os homens brancos de sua geração se lembram da escrava ou sinhama que os embalou, que os amamentou e que os deu de comer. Freyre escreve com nostalgia sobre: a negra velha que nos contou as primeiras histórias de bicho e de mal assombrado. Da mulata que nos tirou o primeiro bicho de pé de uma coceira tão boa. Da que nos iniciou no amor físico e nos transmitiu, ao ranger da cama-de-vento, a primeira sensação de homem .
Casa Grande & Senzala nos hipnotiza com o seu denso e adocicado enredo, enredo que às vezes se confunde com um livro de literatura, tamanho o mundo idílico retratado por Freyre. Para ele, apontando uma outra influência do negro, no que diz respeito à culinária, “pode-se afirmar que na formação do brasileiro – considerada sob o ponto de vista da nutrição – a influência mais salutar tem sido a do africano” . Tenhamos de reconhecer nesta passagem o pioneirismo de Gilberto Freyre: Qual historiador, em plenos anos 30, estaria comprometido com uma pesquisa que priorizasse abordagens como a culinária brasileira, como o vestuário e a sexualidade?
Freyre não se limitou, nesse livro, a repetir o que a maioria dos historiadores descreveu sobre o negro africano: que eles pertenciam a dois grandes troncos culturais – os bantus e os sudaneses. Aliás, essa é uma máxima dos livros didáticos de história. Quanto aos negros que vieram para o Brasil, Freyre mostrou que não se tratava de povos selvagens da tribo dos homens nus.
O Brasil não se limitou a recolher da África a lama da gente que lhe fundou os canaviais e os cafezais; que lhe amaciou a terra seca. Vieram-lhe da África “donas de casa”, para seus colonos sem mulher branca, técnicos para as minas; artífices em ferro; negros entendidos na criação de gado e na industria pastoril; comerciantes de pano e sabão; mestres, sacerdotes e tiradores de reza maometanos .
Até estas últimas linhas, procuramos apontar as considerações não polêmicas da obra de Gilberto Freyre. Afinal, Casa Grande & Senzala é também conhecida como uma obra conservadora, a serviço da antiga aristocracia.
Freyre comenta que a colonização brasileira só foi possível porque lhe trouxeram o braço forte do escravo africano, capaz de esforço agrícola. Para Freyre os indígenas não serviram à escravidão, por se mostrarem molengas e inconstantes. Ele explica a vida social das populações indígenas: povos calados, sonsos e tristonhos; povos coletores e caçadores. O negro, segundo Freyre foi o escolhido para o trabalho escravo porque Portugal já tinha feito na África (ao longo do século XV), experiências com o trabalho agrícola utilizando-se da mão-de-obra africana. Na obra Nordeste (2004), Freyre nos informa as características dos negros escolhidos para o trabalho pesado da lavoura, sendo estes, cambindas e benguelas, congos e angolanos, os mais vigorosos para agricultura.
Freyre justifica a escolha de certos grupos de negros para o trabalho escravo, exemplificando os seus biótipos físicos. Isso gerou muitas críticas, afinal, os negros não aceitavam a condição de cativo, e, também, se mostraram inconstantes nos trabalhos da lavoura. Freyre mesmo, chega a escrever que as tradições regionais taxavam de incompetentes os negros que se deixavam torar facilmente pelas moendas . Isto não seria um ato de contestação ao trabalho na lavoura? O que estava às vistas, nestas passagens da obra Nordeste, é que o negro também não estava apto ao trabalho da lavoura, pois, assim como o índio, o negro também não aceitou a escravidão. O próprio Freyre corrobora esta afirmação:
O que se deve salientar é o seguinte: que uma coisa é o homem dentro do seu próprio sistema de cultura e outra coisa é ele desenraizado desse sistema e sujeito pela conquista militar ou pelo regime de trabalho escravo a um gênero de vida artificial, estranhos aos seus desejos, aspirações e interesses mais íntimos .
A polêmica Freyreana começa a expressar-se, quando este fala das relações afetivas entre o senhor de engenho e o escravo negro. Na Casa Grande “É verdade que desde esses tempos remotos o “Senhor” se adoçou em ‘sinhô’, em ‘nhonhô’, e, ‘ioiô’, do mesmo modo que ‘negro’ adquiriu na boca dos brancos um sentido de íntima e especial ternura: meu ‘nêgo’ minha ‘nêga’...” .
Outra polêmica que envolve o universo freyreano revela-se na sexualidade, ou seja, nas relações entre os senhores brancos com os negros escravizados. Na opinião de Freyre (2003) uma espécie de sadismo do branco e de masoquismo do índio ou do negro teria predominado nas relações sexuais como nas sociais do europeu com as mulheres das raças submetidas. Que o homem branco da época colonial fosse um sádico, isto é, sentisse prazer em fazer e ver o negro sofrer, até que não há controvérsias, mas as antíteses surgem quando das indagações sobre o “lado masoquista” do negro escravizado: o negro gostava de apanhar, ser agredido ou espancado?
Nas relações sexuais entre os senhores e os negros, Freyre aponta os escravos como pessoas passivas, submetidas “ao desejo sem limites do senhor e nesta submissão encontraria um inconfessado prazer” . Será que nunca houve estupros na Casa Grande e Senzala? Freyre ignorou as tensões e resistências em sua obra. A conclusão de Freyre é que “a relação senhor/escravo é uma relação sadomasoquista, isto é, uma relação de prazer sexual e até afetuosa, com violência”.
Contudo, a Casa Grande & Senzala de Gilberto Freyre, não simbolizou apenas o lugar de benevolência e afetividade entre senhores e escravos. O escravo também se mostrou ativo no “mundo freyreano”, quando sua Casa Grande apresenta ao leitor todo seu lado sombrio: “Mas não foi toda de alegria a vida dos negros escravos... Houve os que se suicidaram comendo terra, enforcando-se, envenenando-se com ervas e potagens dos mandingueiros. O banzo deu cabo de muitos. O banzo – saudade da África” . Freyre enumera os mais diversos recursos utilizados pelos negros como um sinal de repúdio ao sistema da escravidão, o que demonstra um paradoxo na escrita do sociólogo pernambucano que viu harmonia e afetuosidade nas relações raciais do Nordeste de Casa Grande & Senzala. A obra Nordeste, nos dá outros exemplos da renúncia do negro aos trabalhos forçados:
O fato de tanto preto (...) ter se suicidado de raiva, de dor, de saudade, foi apenas o aspecto mais trágico do fenômeno de desenraizamento. Mãos, pés e órgãos genitais que não suportaram a separação do resto do corpo – que era a tribo, com sua religião, os seus ritos, as suas danças. A dor do desenraizamento se exprimiu também numa série de atitudes menos drásticas. Na falta de interesse pela vida. No banzo. Na lombeira. Na preguiça. Na libertinagem. Na masturbação entre os moleques mais tristonhos. Na inclinação ao masoquismo, entre os mais doces aos senhores e aos sinhozinhos brancos .

2. A crítica do grupo intelectual de Florestan Fernandes: as pesquisas da desigualdade social brasileira

As décadas seguintes à publicação de Casa Grande & Senzala serão (entre os anos 40 e 50) de uma nova geração de intelectuais, integrada por Florestan Fernandes, Otávio Yanni, Emília Viotti da Costa, Fernando Henrique Cardoso e outros. Os ideais marxistas permearam a escrita dos pesquisadores da USP: emergiram discursos combatentes ao sistema capitalista e em prol da independência econômica do Brasil; no tocante ao social, as possibilidades do discurso foram em torno das contradições de classes e das injustiças sociais. O interesse pelas conseqüências da escravidão e suas relações com o sistema capitalista esteve presente nas obras destes estudiosos. Para eles, a escravidão é pedra basilar no processo de acumulação do capital, instituída para sustentar dois grandes ícones do capitalismo comercial: o mercado e o lucro. Ao criticarem “Casa Grande & Senzala” esses autores afirmam que em Freyre, as relações de dominação no Brasil são ocultadas, quando foram violentas e cruéis. É visível na obra freyreana a tentativa de mostrar o homem branco, tratando seu escravo com bondade, suavidade e ternura. Por isso, considera-se que “Freyre apagaria as tensões, as agudas contradições reais que caracterizaram as relações sociais entre senhores e escravos” .
Neste sentido, “particularmente reveladoras são as análises de Florestan Fernandes, que aborda a temática racial tendo como fundamento o ângulo da desigualdade” . Para esse Sociólogo, um dos maiores críticos da escrita de Gilberto Freyre, “A escravidão suave é um mito cruel a ser destruído (...) falar em suavidade e ternura nas relações senhor/escravo é ir cinicamente contra os fatos” . Os divergentes de Freyre afirmavam que: a organização e regularidade da produção para exportação em larga escala – de que dependia a lucratividade – impunham a compulsão ao trabalho; para obtê-lo, coerção e repressão seriam as principais formas de controle social do escravo . Segundo Florestan Fernandes:
Havia todo um vasto edifício, compreendendo a colônia e a Metrópole apoiado no trabalho escravo. Poderosos interesses e diversos grupos sociais organizavam-se no ‘regime do governo colonial’. Aí se desfaz o mito da cordialidade, doçura, das relações entre senhor e escravo. Em síntese, a superposição de estamentos de uma ‘raça’ dominante e de castas de raças dominadas punha a ordem societária correspondentes sobre um vulcão. A força bruta, em sua expressão mais selvagem, coexistia com a violência organizada institucionalmente e legitimada pelo caráter sagrado das tradições, da moral católica, do código legal e da razão de Estado. O mítico paraíso patriarcal escondia, pois, um mundo sombrio, no qual todos eram oprimidos, embora muito poucos tivessem acesso, de uma maneira ou de outra, à condição de opressores. Nessa sociedade se definia a figura legal do escravo, simultaneamente, como um inimigo doméstico e um inimigo público .
Sobre o mito da democracia racial, defendida por Freyre, Florestan Fernandes observou que, em vez de democracia surgiram, no Brasil, indícios de discriminação, em lugar de harmonia o preconceito. Ele concluiu em suas pesquisas a existência particular de um racismo no Brasil: um preconceito de não ter preconceito; este preconceito se revela na forma do particular, do íntimo, do privado, porque publicamente ele é silenciado. As conclusões de Florestan Fernandes afirmam que ninguém nega que exista racismo no Brasil, mas sua prática é sempre atribuída a outros. Além disso, o problema parece ser o de afirmar oficialmente o preconceito, e não o de reconhecê-lo na intimidade.
As pesquisas de Florestan Fernandes se constituíram como análises importantíssimas para os anos 50 e gerações posteriores. Fernandes discutiu sobre a escravidão, mas, muito mais que isto, ele procurou debater a questão negra no país, isto é, ele convidou a nação para discutir o seu presente: o racismo contra o negro: negro, uma invenção do branco.
As relações, processos e estruturas sociais que constituíam a ordem social escravocrata estavam amplamente permeadas pelas mais diversas formas de discriminação e operavam no sentido de manter a posição e a relação recíprocas existentes entre as ‘raças’ a que pertenciam os senhores e as ‘raças’ em que se recrutavam os escravos. Neste contexto, negro e escravo confundem-se. Na linguagem cotidiana, principalmente nas das pessoas que pertenciam à camada senhorial, elas eram noções sinônimas e intercambiáveis. Está em marcha o fetichismo da cor. Negro equivalia a indivíduo privado de autonomia e liberdade; escravo correspondia (em particular do século 18 em diante), a indivíduo de cor .

Com o fim do período escravista o termo negro substituirá ao termo escravo no plano social e econômico. Após as pesquisas que realizou nos anos 50, Florestan Fernandes constatará que os indivíduos negros ou mulatos sofriam no Brasil uma dupla proibição, em termos sociais: o acesso a papéis sociais que pressupunham regalias e direito lhes era simultaneamente vedado pela ‘condição social’ e pela ‘cor’. Estas considerações levarão Florestan Fernandes a empreender uma crítica fulminante à “democracia racial” de Gilberto Freyre:
Depois de praticamente quatro séculos de escravatura, de contínua e retirada metamorfose do africano em escravo, do escravo em negro, do negro em braçal, diferente, outro, a tese da democracia racial soa como invenção, talvez bem-intencionada, talvez, cruel. Estabeleceu-se ‘com a abolição e a proclamação da República as preliminares da tese da harmonia das raças, paz social entre negros e brancos, cordialidade submissa do brasileiro. Estabelecia que o negro não tem problemas no Brasil, já que houve a revogação do estatuto servil, que as oportunidades de acumulação de riqueza, conquista de prestígio social e poder estão abertas a todos. Engendrou-se, assim, um dos grandes mitos de nossos tempos: o mito da democracia racial brasileira .
Assim como Fernandes, o grupo revisionista às pesquisas de Freyre procurou denunciar a violência no cativeiro, e também, abordar a reação dos cativos. Esta última aparece “apenas como rebeldia, uma espécie de reação do cativo à severidade dos castigos e da exploração econômica num sistema que o tinha como mercadoria” . Para os revisionistas o escravo no período colonial será reduzido à condição de “coisa”: É a decretação da impotência do escravo de tornar-se agente transformador da sociedade. Entretanto, a coisificação do escravo será um dos temas mais criticados pelas pesquisas historiográficas mais recentes. Neste sentido, Fernando Henrique Cardoso, por exemplo, defende que o cativo legalmente equiparado a uma mercadoria poderia chegar até à coisificação subjetiva, isto é, a sua autoconcepção como a negação da própria vontade de libertação; sua auto-representação como não-homem .
Se a proposta de Freyre, na década de 1930 foi mostrar a docilidade brasileira em suas relações sócio-culturais, o grupo de Florestan Fernandes procurará discursivamente construir outra versão para a história brasileira. O objetivo do grupo Florestan Fernandes, apoiados teoricamente no marxismo, será mostrar a degradação (a ruína) do negro brasileiro sofrida pelas interferências do homem branco. Uma obra, que se tornou exemplo para esta versão da história, foi o Livro de Fernando Henrique Cardoso, “Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional: o negro na sociedade escravista do Rio Grande do Sul” .
O objetivo desta obra de Fernandes H. Cardoso foi apontar primeiramente, como se construiu um mundo idílico nos pampas gaúcho, apoiado nos ideais de uma “democracia rural” na Região Sul do país; em segundo lugar, a obra vai demonstrar o contrário, apontando como nas estanciarias e charquearias o negro também foi injustiçado e sofreu todo tipo de violência física e psíquica que contribuiu para sua despersonalização humana.

Conclusão
As pesquisas difundidas pelos intelectuais revisionistas da obra de Freyre pautaram-se numa operação historiográfica que buscou priorizar as questões sobre racismo e desigualdades sociais na sociedade brasileira. Apesar de ser uma discussão original para aquela época, por optarem por mostrar o lado sombrio da escravidão brasileira, o grupo de Florestan Fernandes se homogeneizou numa escrita enunciativa e discursiva, que, aos olhos de nosso tempo presente, vitimizou a história do negro escravo em nossa sociedade. Os espaços de negociações são quase inexistentes, o que aponta para uma história do poder unilateral dos senhores, diante dos escravos coisificados como defendeu Fernando Henrique Cardoso nos anos 60. Quanto à obra de Freyre, Casa Grande & senzala, é considerada por muitos críticos como o maior livro sobre a sociedade brasileira, posto que analisou as contribuições culturais dos três pilares sociais de nossa singularidade: o branco, o negro e o índio, por intermédio de um enredo inovador para o seu tempo, falando de culinária, de comida e de sexualidade. Se Freyre apagou as tensões sociais, foi porque ele era filho do passado escravista: um passado em que o Brasil era comandado por senhores de engenho, um passado de casas grandes e senzalas.

A História Nominalista Revelada: abriu-se a caixa de pandora e os enigmas foram decifrados

Por: José do Egito N. Pereira


“Em algum ponto perdido deste universo, cujo clarão se estende a inúmeros sistemas solares, houve um astro sobre o qual animais inteligentes inventaram o conhecimento. Foi o instante da maior mentira, da suprema arrogância da história universal”.

Nietzsche


Resumo

O objetivo deste trabalho é demonstrar como a escrita da história, nas últimas décadas do século passado, passou por profundas mudanças epistemológicas, envolvendo discussões que deram prioridade a questionamentos no campo do conhecimento histórico. Tais discussões passaram a problematizar as percepções metanarrativas sobre a história, isto é, sobre as linearidades de um possível “processo histórico”. A noção da própria história passou a ser colocada sob dúvidas, negada; além de negarem a História, certos autores também passaram a desconfiar das verdades em história. Historiadores como Michel Foucault, Paul Veyne e Michel de Certeau, cada um a sua maneira, sob as vestes de um nominalismo, revolucionaram os olhares na operação historiográfica, no tocante as vontades de verdade, ao campo da história e a relação entre passado e presente. Enfim, qual o grau de nossas certezas em história? Até que ponto a pesquisa histórica está isenta de nossas subjetividades? A “caixa da história” foi aberta: os “enigmas” foram decifrados.

Palavras-chave: História, verdade, passado-presente.
Na história da mitologia, Pandora foi uma linda mulher dada de presente aos homens pelos deuses gregos. A mulher trazia consigo uma Caixa que, em hipótese alguma deveria ser aberta. Entretanto, a curiosidade de Pandora infligiu o aviso e a Caixa foi aberta. Resultado: os homens perderam a inocência; a Caixa de Pandora revelou todos os males do mundo; os deuses se vingaram dos homens, e do amigo dos homens (Prometeu)! E no tocante à historiografia, como ilustrar este mito, trazendo para nossa proposta algumas discussões sobre o campo da história, da operação historiográfica, do real e da verdade em história? Neste caso, Clio, a Musa da história, substituirá Pandora nesta empreitada, e assumirá uma postura historiográfica atual que, ao abrir a “Caixa da história”, revelará quais as possibilidades e interesses dos conhecimentos discursivos em história; e, quais as relações entre passado e história. Enfim, a narrativa de Clio servirá a uma história da História ou a história das histórias?
Deixemos Clio abrir a Caixa para vermos o que as primeiras frestas nos mostrarão sobre os debates atuais no campo da história. Contudo Clio avisa: seu olhar sobre as perspectivas atuais da escrita da história tem uma máscara – uma mácara nominalista, profundamente marcada pelos traços de Michel Foucault, Paul Veyne e Michel de Certeau.
A história encontra-se decifrada: perdera sua ingenuidade quanto a teleologia linear do “processo histórico”, cujos objetivos eram o Progresso (Comte), o Absoluto (Hegel) ou a Sociedade Comunista (Marx). Hoje, as filosofias da história e suas metanarrativas são vistas com desconfiança pelas teses Pós-Estruturalistas e Pós-modernas da história . De acordo com estas correntes (híbridas), a Sociedade Ocidental nas décadas mais recentes, passou por uma mudança de era Moderna para “Pós-moderna”, que se caracteriza pelo repúdio final da herança da Ilustração, particularmente da crença na “razão” e no “progresso”, e por uma insistente incredulidade nas grandes metanarrativas, que imporiam direção e sentido à história . Questiona-se a história, como também, a natureza do conhecimento com a dissolução da idéia de verdade, além de problemas de legitimação em vários campos .
A história é vista, atualmente, no círculo dos discursos, das relações entre poderes e saberes que estão distribuídos (entre o visível e o dizível) nas mais diversas ramificações sociais . A história passa a ser almejada para “rachar” os discursos de continuidades, os sistemas permanentes, os blocos homogêneos, as uniformidades. Foucault, ao prefaciar o livro de Gilles Deleuze e Félix Guattari- “Anti- Édipo”, escreveu: “preferi o que é positivo e múltiplo, a diferença à uniformidade, os fluxos às unidades, os agenciamentos móveis aos sistemas .
Por falar em sistemas, Foucault de forma alguma se traduz num filósofo sistemático. No entendimento de Rorty, os filósofos estão distribuídos em dois grupos: sistemáticos ou edificantes. O grupo dos filósofos sistemáticos, como os grandes cientistas, constrói para a eternidade; já o grupo dos filósofos edificantes (ao qual, Rorty inclui Foucault) destrói para o bem de sua própria geração . Depois da filosofia de Foucault, os críticos passaram a perguntar: há algo de novo debaixo do Sol? Foucault revolucionou a escrita da história ao defender que a realidade é aquilo que cada época assim o definiu como verdade:


Com Foucault, aprendi que nada pode ser visto como natural, justo, verdadeiro, belo, desde sempre. As formas que os objetos históricos adquirem só podem ser explicadas pela própria história. É vasculhando as camadas constitutivas de um dado saber, de um dado acontecimento, de um dado fato, que podemos apreender o movimento de seu aparecimento, aproximarmos do momento em que foi ganhando consistência, visibilidade e dizibilidade, foi emergindo como as duras conchas emergem do trabalho lento de petrificação do lamaçal do mangue .

Foucault se transformou num bárbaro, num Átila da história, a rir e a minar o terreno dos historiadores devastado pela poeira dos fatos . Depois do grito de Foucault, muitos historiadores ficaram a “malhar em ferro frio”. Para Jacques Revel, a obra que talvez tenha marcado mais profundamente os historiadores franceses desde a década de 1960 não foi a de seus pares, mas a de um filósofo: Michel Foucault.
Uma das grandes temáticas que envolvem o ofício do historiador refere-se à questão de como se poderia chegar à verdade. Esta questão já é antiga na história da filosofia (de Platão a Górgias, de Descartes a Hume) , e no que concerne a escrita da história existem, também, posições diversas. Quais as condições de verdade em história? Eis a questão! Vários historiadores, principalmente aqueles ligados à concepção tradicional da história dita-Positivista , acreditavam que através da análise “cientificamente” dos fatos poder-se-ia desvendar os enigmas e a verdade em história, afinal, os fatos falavam por si. O paradigma dos historiadores tradicionais ignorava os recortes que os artesãos da história faziam, quando da escolha dos objetos históricos.
Em análise contrária à versão “positivista” da verdade em história, Nietzsche concluiu que à vontade de verdade é a crença que funda a ciência, de que nada é mais necessário do que o verdadeiro. Necessidade não de que algo seja verdadeiro, mas de que seja tido como verdadeiro . Mas, e quanto à atualidade? O que diz as discussões historiográficas sobre as questões que buscam por verdades?


Quanto aos historiadores, atualmente eles já se dizem cansados de discutí-las e, sem vencerem as oporia que não vêem como produtivas, preferem, sob a influência dos Annales, e de Foucault, rejeitar essa discussão. Na Arqueologia do saber, Foucault afirma que a história pós 1960 afastou-se da filosofia e de questões sobre si mesma: nacionalidade e teleologia do devir, relatividade do saber histórico, possibilidade de descobrir ou de construir um sentido para o passado e para o inacabado presente futuro, verdade do conhecimento histórico, etc. .


Destarte, percebe-se que dentre uma gama de historiadores, não se almeja mais desvendar a verdade da “História”. Muito pelo contrário, questiona-se a existência de uma “História”, de suas leis. Para a tendência nominalista da história, o conhecimento pode ser compreendido como discurso ou representação sobre uma determinada realidade. A representação não é uma cópia do real, sua imagem perfeita, espécie de reflexo; mas uma construção feita a partir dele. . Portanto, uma representação em escrita da história, a exemplo de “O Retorno de Martin Guerre”, que se destina a ser uma ficção, uma intriga, sobre a vida de sujeitos que viveram no século XVI, pode ser interpretada como uma representação de uma outra representação (os documentos) de um “real” -passado .
Quando uma representação preenche uma ausência (o real) isto não significa que esta representação se transforma numa categoria objetiva sobre o não-dizível (real). Destarte, a representação se transforma, ao nomear uma ausência, num discurso sobre o não-dito (um significante sem significado). E o que é um discurso? Segundo a perspectiva foucaultiana, o discurso é uma prática que forma sistematicamente os objetos de que se fala .
Pressupõe-se, assim, que o conhecimento (discurso, verdade, representação...) não passa de uma invenção humana que utiliza às verdades históricas para organizar o caos (o mundo), e dinamizar a vontade de poder (ou vontade de potência), necessidade indissociável do homem. Outrossim, entendemos que o conhecimento que aplicamos sobre as coisas não pode ser visto como uma necessidade natural do ser humano, mas, uma relação de violência, de dominação, de poder e de força, de violação para com o nosso mundo caótico, sem lei e sem ordem. Vejam o que escreveu Foucault sobre a verdade difundida pelo conhecimento humano, no tocante ao mundo:


É contra um mundo sem ordem, sem encadeamento, sem forma, sem beleza, sem sabedoria, sem harmonia, sem lei, que o conhecimento tem de lutar... Não há nada no conhecimento que o habilite, por um direito qualquer, a conhecer o mundo. Não é natural a natureza a ser conhecida .


E para satirizar aqueles que acreditam na verdade, alcançada por intermédio do conhecimento, Foucault (2003, p.13) utiliza-se de Nietzsche, ou melhor, de sua “maldade” sobre as pretensões das essências metafísicas humanas, da seguinte forma:

Em algum ponto perdido deste universo, cujo clarão se entende a inúmeros sistemas solares, houve, uma vez, um astro sobre o qual animais inteligentes inventaram o conhecimento. Foi o instante da maior mentira, da suprema arrogância da história universal .


O objetivo dessas questões não é levantar verdades metafísicas, mas construir inúmeros discursos sobre o mundo social. Ou seja, se o real não pode ser alcançado, pelo menos, a partir de questões do nosso presente, pode-se construí-lo ou reconstruí-lo, de acordo com os diversos olhares em história. Segundo Albuquerque Jr, Foucault tem a coragem de afirmar que a história é um saber perspectivo, ou seja, que as narrativas que fazemos de um dado acontecimento tem a nossa própria participação . Afinal, o conhecimento histórico está ligado à época de sua produção; ao presente do historiador, que é sempre novo. Se o presente é sempre novo, a verdade do passado será sempre nova, pois dominada pela novidade do presente .
Para Reis, a história é uma construção do sujeito- ele reconstrói o passado, atribui-lhe um sentido sob a influência de suas crenças, convicções, idéias e personalidades . Nesse sentido, percebemos que a história é um constructo produzido pela subjetividade do historiador, que todo ponto de análise é relativo, e sempre se pretende verdadeiro quando está em confronto com outros pontos. Os discursos históricos usam sempre a mesma retórica: a distinção entre o falso e o verdadeiro.
A busca pela verdade, apesar de ser algo já bastante debatido pela crítica pós-estruturalista e nominalista, ainda continua sendo uma das grandes polêmicas que rodeia o campo da história. Nestes entraves, destacam-se os debates entre os historiadores do grupo realista versus os historiadores do grupo nominalista. Os realistas (Ranke, Comte, Ricoeur), são aqueles que acreditam que, apesar de submetido a condições subjetivas, o real pode ser reconstruído em si, em sua “realidade positiva”. Retorna-se a idéia metafísica da possibilidade da coincidência entre discurso e ser .
Quanto ao outro grupo:

Os “nominalistas” não crêem nessa possibilidade de se tocar o real em si. Todo discurso seria uma construção subjetiva sobre o real. O real é “nomeado” pelo sujeito, que passa a operar com esse real construído. A verdade é instituída por uma subjetividade. O discurso refere-se ao seu objeto, mas jamais coincide com ele; e nem... Pretende isso .

E você, o que acha de tudo isso? Se a história não resgata o real do passado - porque o historiador escreve a partir de um tempo presente-, então para que serve a história? Qual o seu valor social? O que é a história? O que é a história na teoria e na prática? Como poderemos chegar a uma definição de história?
Keith Jenkins, em “A História Repensada”, deu-nos uma definição de história, cética e irônica. Mas, uma definição que fora construída metodologicamente.
Primeiramente, Jenkins, se propôs a discutir história, em termo de teoria, e para isso, utilizou-se de dois argumentos.
O primeiro argumento utilizado foi:

Que a história constitui um dentre uma série de discursos a respeito do mundo. Embora esses discursos não criem o mundo... Eles se apropriam do mundo e lhe dão todos os significados que tem. O pedacinho do mundo que é o objeto (pretendido) de investigação da história é o passado .

O que podemos entender desta citação? É que o mundo é examinado não apenas pelo discurso histórico, mas, vários discursos, como por exemplo, a sociologia, a geografia, etc. criam seus entendimentos a respeito do mesmo mundo, ou de uma mesma cena, paisagem, abordados pelo saber do historiador.
Percorrendo o pensamento de Jenkins, logo percebemos os “Raios X” que ela faz dentro do campo da história. Jenkins fala que a disciplina história é constituída por vários discursos a respeito do passado. Fala também que as fissuras foram inevitáveis. Mas, o que é o discurso para nossa historiadora? O discurso é aquilo que se apropria do passado do mundo, e lhe dá um significado.
A partir desta discussão, a problemática História–passado começa a problematizar-se: Afinal, história e passado não são categorias diferentes? Jenkins mostra-nos que o passado e a história não estão unidos; que eles estão livres um do outro; e que, aquele que entender a heterogeneidade entre passado e história (presente), com toda certeza chegará a uma conclusão do que é a história na teoria.
Vejamos: Por que é importante entender a distinção entre história e passado? Ora, o passado já aconteceu; e a história é aquilo que os historiadores fazem com ele, quando põem mãos à obra. Afinal, para Jenkins, a história é um constructo lingüístico intertextual; é uma construção lingüística a partir de “documentos” e de textos. Devemos polemizar, no entanto, mostrando que essa construção lingüística não abarca a História, ou seja, o “todo”, o “global”; que existem lacunas e exclusões, que a história é descontínua.
Acho que devemos compreender, que cada cientista social apresenta sua maneira própria a partir do seu lugar de pesquisa para ler e falar sobre um dado objeto. E isto é discurso. Discurso este, que pode gerar diferentes interpretações no tempo e no espaço. Enfim, o que se deve observar é que o mundo e o passado são construídos por meio de narrativas, que por sua vez, constituem o real, ou seja, a realidade.
No tocante ainda à teoria, Jenkins nos apresenta o segundo argumento, referente à conciliação entre história e passado: “Dada à distinção entre passado e história, o problema para o historiador que de algum modo quer captar o passado em seu discurso histórico torna-se este: Como se conciliam aquelas duas coisas” .
Segundo nossa “autora”, essa questão pode ser problematizada em três níveis: Epistemologia, Ideologia e Metodologia. No campo da Epistemologia, a pergunta que se faz é esta: “Qual o conhecimento mais adequado para se conhecer o passado?” “Como conhecer algo que está ausente?”
Hoje, as pretensões de se chegar à verdade sobre o passado são vistas com desconfianças. O que está em jogo é:

Como histórias específicas vieram a ser elaboradas segundo um e não outro molde, em termos não só epistemológicos, mas também métodos lógicos e ideológicos? Nesse ponto, o que é possível saber e como é possível saber interagem com o poder .

O que Jenkins tenta nos passar, é que nenhum historiador consegue abarcar o passado em sua totalidade; nenhum relato consegue recuperar o passado tal qual ele era; a história é um constructo pessoal do historiador (o passado conhecido é um artefato nosso); e, sabemos mais sobre o passado do que as pessoas que viveram lá: o historiador descobre o esquecido e reconstrói o não percebível, cada um a sua maneira. Ora! Se a história constituísse um discurso objetivo, então, por que existir tantas interpretações diferentes sobre um mesmo objeto-passado?
Quanto à questão metodológica, o que Jenkins argumenta é que alguns historiadores buscam nos métodos um “elo” de encontro com a objetividade, com a verdade. Mas, para ela, é a Ideologia quem determina nossas escolhas, nossas verdades, posto que a ideologia encontra-se não apenas nos aparelhos estatais, mas, em todos os seguimentos sociais. “É enganoso falar do método como caminho para a verdade” . É a Ideologia quem institui escolhas. A história, nesta perspectiva constituiu-se num campo de legitimação de relações de poder. “A história nunca se basta; ela é sempre destinada a alguém” . Daí ser a história um campo em litígio: “A história se forja em tal conflito, e está claro que essas necessidades conflitantes incidem sobre os debates (ou seja, a luta pela posse) do que é a história” .
E quanto à definição da história? Para nossa proposta, a história é o lugar em que os valores (“verdades”) socioculturais são discursivamente apresentados como naturais, como essências ontologicamente apreendidas. Porém, Keith Jenkins (2001, p.52), também tem a sua definição de história:

A história é um discurso cambiante e problemático, que tem como pretexto um aspecto do mundo, o passado, que é produzido por um grupo de trabalhadores cuja cabeça está no presente... que tocam seu ofício de maneiras reconhecíveis uns para os outros... e cujos produtos, uma vez colocado em circulação, vêem-se sujeitos a uma séries de usos e abusos que são teoricamente infinitos, mas que na realidade corresponde a uma gama de bases de poder que... Estruturam e distribuem ao longo de um espectro do tipo dominantes/marginais os significados das histórias produzidas .

Expostas estas considerações sobre a relação da história com o conhecimento e também com a verdade, resta-nos ainda uma discussão que envolve o campo da história.Vejamos o que diz Paul Veyne em “Como se escreve a história”:


O Campo da história é, pois, inteiramente indeterminado, com uma única exceção: é preciso que tudo o que nele se inclua tenha, realmente, acontecido. Quanto ao resto, que a textura do campo seja cerrada ou rala, completa ou lacunar, não importa .

Vamos discutir esta citação? Nestas palavras, Veyne aborda que tudo pode ser histórico, que só não é história o que não aconteceu; que a história é escrita a partir das indagações do historiador (subjetividade); que o historiador escreve somente aquilo que lhe interessa; daí a existência de lacunas temporais em que não se vê historicidades. Esta ausência de historicidade é o que Veyne chama de não-factual, isto é,os eventos, ainda não consagrados como tais. Deste modo, podemos concluir que a história não é a descrição de toda uma historicidade, mas, aquilo que podemos saber – a partir de nossas escolhas – sobre ela. Daí ser a história um tecido incoerente, em que, alguns objetos são exaustivamente abordados, enquanto que outros não recebem o mesmo tratamento.


Um século é um branco nas nossas fontes, e o leitor mal sente a lacuna. O historiador pode dedicar dez páginas a um só dia e comprimir dez anos em duas linhas: O leitor confiará nele, como um bom romancista, e julgará que esses dez anos são vazios de eventos .

O que se deve entender em Veyne, é que a história é escrita a partir de subjetividades, a partir do interesse, a partir das fontes que chegam e que movem as indagações do historiador. Não existe uma lei geral que proíba aos fatos sociais sua historicidade. A história não definiu seus limites, seu paradigma (modelo). O historiador pode invadir todas as zonas do social. E, se tudo pode ser histórico, “logo a história não existe”.
Segundo Pesavento, a posição assumida pelo historiador francês foi verdadeiramente iconoclasta: a história para Veyne constitui-se numa narrativa verídica, como relato do que ocorrera um dia. Enquanto discurso, a história é capaz de fazer reviver o vivido, mas não mais que o romance. A ficção atingiu os domínios de Clio pela fala autorizada de um historiador .

Exposta esta questão, e para concluir nossa abordagem, resta-nos, ainda, uma última temática. Como se dá a operação historiográfica? O grande teórico que discutiu, e permanece atual a esta questão, foi o francês Michel de Certeau que seguiu uma orientação neonietzscheana de Foucault, ao mostrar que todo historiador seleciona, constrói, defende posições e interesses, propõe e reproduz um regime de verdade que é o do seu lugar social, a instituição a qual pertence .
Certeau, definitivamente, decifra o enigma da operação historiográfica. Ele nos mostra como toda subjetividade esconde dos leigos, o poder da instituição que a cerca, que impõe regras, métodos, objetos. É isso mesmo, o historiador, como qualquer outro profissional, tem a sua subjetividade constituída, a partir de um lugar fechado, isto é, a partir da instituição que lhe abarca, ou melhor, a qual ele (o historiador) está subordinado.
Michel de Certeau (1982, p.66) sintetiza a descrição de como procede a operação historiográfica da seguinte forma:

Encarar a história como uma operação será tentar, de maneira necessariamente limitada, compreendê-la como a relação entre um lugar (um recrutamento, um meio, uma profissão, etc.) procedimentos de análise (uma disciplina) e a construção de um texto (uma literatura). Apropria-se da realidade.É admitir que ela faz parte da “realidade” da qual trata, e que essa realidade pode ser apropriada “enquanto atividade humana”, “enquanto prática” .

Certeau procura mostrar que a operação histórica se refere à combinação de um lugar social, de práticas ‘científicas’ e de uma escrita. Resumindo: para escrever sobre um dado objeto, o historiador precisa estar vinculado a um lugar histórico, uma instituição. É essa instituição quem determina como escrever, qual o método utilizar, e qual objeto pesquisar. Essa instituição é o não-dito, para Certeau; é ela quem vai determinar como se dará a prática historiográfica – a técnica, a disciplina. Quanto à escrita, ela se constitui num agente que ressuscita o passado para matá-lo outra vez. Isto é, o morto, “o passado”, é resgatado de acordo com a nossa interpretação. Neste sentido, a escrita coloniza o morto; ela institui a ele um fim.
A escrita pode pôr um fim, encerrar o passado, contudo, esse passado estará sempre aberto a novas pesquisas. Afinal o passado não é um dado, ele é algo criado. De resíduos de papéis, de legumes, até mesmo de geleiras e das neves eternas o historiador faz outra coisa: faz deles história. Artificializa a natureza . A partir desta “revelação”, se segue outra questão: como conhecer o posicionamento do historiador na operação historiográfica? Seu próprio discurso deve revelá-lo .
Quanto à objetividade, Certeau descarta o dado ou o natural na escrita do historiador. Quando o historiador supõe que um passado já dado se desvenda no seu texto, ele se alinha com o comportamento do consumidor. Recebe passivamente os objetos distribuídos pelos produtores . Das teses de Certeau podemos concluir que, o passado em história não é um dado, mas um produto; um produto que dá lugar à morte (o passado) no meio dos vivos. Porém, o morto passa pelo crivo da escrita, que exorciza o passado para depois assassiná-lo como meio de estabelecer um lugar para os vivos.
Em história a escrita representa o papel de um rito de sepultamento: ela exorciza a morte introduzindo-a no discurso; ela não fala do passado senão para enterrá-lo num livro; ela é um túmulo no duplo sentido de que, através do mesmo texto, ela honra e elimina. Enfim, a escrita faz mortos para que os vivos existam .
A caixa de Clio está aberta: dentro da caixa não se viu males, muito pelo contrário, se viu a vida, fazendo-se e refazendo-se pelos discursos e representações históricas. A história não se deve prestar à tirania da VERDADE, mas a escrita de nossos desejos, de nossas vontades, de nossos regimes temporais de verdades que podem significar o bem ou o mal, já que somos humanos e dionisiacamente (seguindo a voz de Nietzsche), estamos para além do bem e do mal. A escrita da história segue o rumo de nossos desejos, de nossas vontades; não estamos fora da história, somos a história sem a demagogia das neutralidades: somos subjetividades que constroem versões para nossas realidades.
Teóricos como P. Veyne, M. Foucault e M. de Certeau, desconstruíram as certezas da “ciência história”.
A “maldade” de seus escritos demoliu os alicerces da história realista. A partir deles, a história passou a ser repensada; as certezas históricas questionadas. A Caixa da história fora aberta e os enigmas da história (Clio) foram decifrados.