segunda-feira, 15 de novembro de 2010

OS HOMENS INFAMES NA NOVA HISTÓRIA CULTURAL: OLHARES

OS HOMENS INFAMES NA NOVA HISTÓRIA CULTURAL: OLHARES

José do Egito Negreiros Pereira
egito78@hotmail.com




“Quando as pessoas seguem Foucault, quando têm paixão por ele, é porque têm algo a ver e a fazer com ele, em seu próprio trabalho, na sua existência autônoma. Não é apenas uma questão de compreensão, mas de intensidade, de ressonância, de acorde musical”.

Gilles Deleuze




Resumo

O objetivo deste trabalho é demonstrar como a partir da década de 1970 a pesquisa historiográfica passou por profundas mudanças sob a égide dos “olhares” feitos, não por obra de um historiador de carreira, mas por um filósofo: Michel Foucault. Não se trata de apresentar, aqui, uma análise sobre as principais obras do filósofo francês, mas, de mostrar como a pesquisa de Foucault sobre as pessoas comuns (homens infames ou os esquecidos da história) influenciou uma série de pesquisas que tinham por objetivo caminhar nos seus passos (Michelle Perrot), ou para, a partir de um mesmo olhar (um moleiro friuliano, “Mennochio”, versus um “Pierre Rivière”) criticar os discursos de Foucault, a exemplo de Carlo Ginzburg. É claro que outros historiadores preferiram tratar as classes populares de acordo com seus respectivos desejos, deixando de lado os discursos, e dando ênfase a cultura, como no caso de E. P. Thompson; outros preferiram tratar a cultura, para além do erudito/popular, demonstrando as autonomias quando das práticas de leituras (Chartier); e outros, preferiram ser envolvidos pelo “manto” da antropologia cultural, dando-se prioridade às narrativas interpretativas (Darnton). Mas todos, à sua maneira, seguiram como Michel Foucault, fazendo história a partir de um mesmo objeto: a história vista de baixo, a história das classes populares, das pessoas comuns, dos homens infames.

Palavras-Chave: Michel Foucault, Pessoas Comuns, Nova História Cultural.


INTRODUÇÃO

Este texto, talvez, possa ser encarado, com vistas ao título, com um pouco de pretensão, posto que, pretende-se colocar numa mesma narrativa, historiadores conceituados no campo da história cultural pós-anos 1970 (a exemplo de Ginzburg, Thompson, Chartier, Natalie Zemon Davis, entre outros) sob a maestria do “olhar” de Michel Foucault, no tocante ao objeto principal da história: o homem. Talvez seja mesmo uma audácia. Logo Foucault! Aquele “cavaleiro bárbaro”, sem método, sem pretensão de objetividade, de verdade, tão duramente criticado por Ginzburg. Logo Foucault! Aquele intruso, que adentrou no campo da história, não para enaltecer as pesquisas dos historiadores da 2ª geração dos Annales, mas para minar o campo da disciplina que o excluía. Por mais que o trabalho de Foucault tenha sido alvo de muitas críticas, não dá para deixar de lado a profundeza de sua originalidade no campo da disciplina que teimava em renegá-lo: os homens infames, os “loucos”, os prisioneiros... São a prova do pioneirismo de Foucault no terreno da história. Este texto tem o objetivo de alçar “vôo”, a partir das “migalhas de Foucault”, sobre as principais pesquisas no âmbito da Nova História Cultural dos últimos anos; estas pesquisas nem sempre se utilizaram dos “insights” foucaultianos (poder, saber, disciplina...), mas por outro lado, fizeram uso de seu foco de abordagem em história: o prisioneiro, o sujeito processado, o trabalhador da fábrica, etc. Enfim, deste olhar sobre o homem comum (de origem subalterna) diante do poder (do estado, da fábrica, da inquisição, ou de um inimigo qualquer) os historiadores sócio-culturais não escaparam. Foram todos acertados pela flecha de Michel Foucault.


1. Michel Foucault versus Carlo Ginzburg: embates na Nova História Cultural

O livro que levou Foucault à fama e ao reconhecimento intelectual foi a “histoire de la folie à i âge classique” . A obra que passou inicialmente quase despercebida entre os historiadores, não pretendia fazer a história dos loucos ao lado, em presença ou em convívio com as pessoas tidas por “normais”; nem a história da razão em oposição à loucura. Tratava-se de levantar a história dessa divisão incessante, porém sempre modificada; tratava-se, enfim, de mostrar como a loucura fora percebida em diversos momentos históricos, da Renascença ao século XIX. O que Foucault nos mostrou foi que a loucura não é uma categoria, um objeto natural; ele nos mostrou que para cada tempo, a loucura teve um significado, e que, foi somente a partir do século XIX, que a medicina passou a ter o poder sobre o campo de saber da loucura, afixando nela, o rótulo de “doença mental”, indicação que tem o poder da interdição.
Foucault passou a fragmentar o campo da história, a fazer uma história geral. Na visão de Paul Veyne, Foucault revolucionou a história e se firmou como um dos teóricos mais utilizados pelos novos historiadores. O resultado da influência de Foucault (juntamente com as contribuições de Thompson, Natalie Davis, Geertz e Hayden White) dará início a uma nova visão dominante sobre a história cultural: “A Nova História Cultural”, que entrou em uso no final da década de 1989, quando o historiador norte-americano Lynn Hunt publicou um livro com esse nome (A Nova História Cultural), resultado da reunião de vários ensaios . A Nova História Cultural mostrou-se ser uma modalidade de fazer história no plural. Tal modalidade:
Não recusa de modo algum as expressões culturais das elites ou das classes letradas, mas revela especial apreço, tal como a história das mentalidades, pelas manifestações de massas anônimas: as festas, as resistências, as crenças heterodoxas... Em uma palavra, A Nova História Cultural revela uma especial afeição pelo informal, e, sobretudo pelo popular .
Não tomaremos neste texto, a postura de fazer uma reminiscência das obras de Foucault, mas defenderemos quais textos aproximam Foucault dos demais historiadores culturais. E um exemplo explícito desta aproximação se deu em 1973, quando Foucault publicou o “Eu Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão”, estudo sobre um matricida francês. Esta obra foi publicada pela coleção francesa archives, série voltada para a publicação de fontes sobre casos, sobretudo judiciária. Para Vainfas a micro-história foi preconizada nesta coleção, da qual fizera parte Foucault.
Se a “História da Loucura” já trouxera algumas polêmicas para o currículo de Michel Foucault, por ele explanar uma “arqueologia do silêncio”, o “Eu Pierre Rivière...”, também não escapou às críticas, em especial às de Carlo Ginzburg, que acusou Foucault de dá prioridade aos discursos judiciário e psiquiátrico, deixando para segundo plano as memórias do assassino, que viveu no século XIX.
Segundo Ginzburg, a possibilidade de interpretação sobre o discurso de Pierre Riviére foi totalmente excluída de forma explícita, porque, segundo Foucault, interpretar aquele texto, equivaleria a alterá-lo, reduzi-lo a uma “razão” estranha a ele . A “irritação” ou sátira do historiador italiano para com Foucault parece visível no prefácio do seu livro, publicado em 1976, posto que, a “arqueologia do silêncio” de Foucault, transformou-se, na opinião de Ginzburg, em silêncio puro e simples, por vezes acompanhado de uma muda contemplação estetizante .
“O Queijo e os Vermes”, livro que fez a fama da modalidade historiográfica da micro-história, se propôs a ser um projeto diferente do realizado por Foucault, em seu “Pierre Rivière...”. Utilizando-se do método indiciário e dos filtros da circularidade cultural, Ginzburg, analisou um processo inquisitorial que tinha como réu, um simples moleiro friuliano, chamado Domenico Scandella, conhecido por Mennocchio. No livro, Ginzburg demonstrou uma excelente habilidade de lidar com as fontes, tentando estabelecer relações de verossimilhança entre a vida camponesa da Itália quinhentista (a pobreza dos camponeses, o papel do moleiro em uma sociedade arcaica, os lugares de sociabilidade, os valores sociais e espirituais...) com questões que o historiador pretendia descobrir. Literalmente, Ginzburg comandou sua pesquisa como um detetive, fazendo perguntas aos processos, numa tentativa de se aproximar à veracidade dos fatos. O livro, que foi distribuído em 62 capítulos, mais parece uma obra de ficção, tal foi a leveza do enredo.
Nesta mesma linha de pesquisa, Natalie Zemon Davis, em “O Retorno de Martin Guerre” , retratou o caso de um impostor, que no século XVI tomou o lugar de uma outra pessoa, e viveu maritalmente com uma esposa que de direito não “lhe pertencia”. O livro mais parece uma trama de ficção, do que uma obra de história. Ao longo de 12 capítulos, Natalie Davis, colocou ao leitor um enredo fascinante, onde se misturam amor, ódio, imposturas, conveniências, comédia e tragédia; onde em clima de suspense, prevalece à história do impostor “Martin Guerre”, sobretudo, mas também a do verdadeiro Martin Guerre.
O livro de Davis não escapou às críticas, dada às montagens, as seleções, os recortes, e a própria estrutura da “intriga” que a historiadora criou. Davis chegou mesmo a afirmar, em resposta as críticas, que o historiador cria o passado, e que a história é uma ficção, tal como a literatura. Mas uma ficção trabalhada a partir daquilo que existe . Diante desta polêmica entre ficção e história, Paul Ricoeur, chegou mesmo a admitir a ficcionalização da história, presente na capacidade imaginária das narrativas de construir uma visão sobre o passado e de se colocar como substituta a ele. A ficção é quase história, assim como a história é quase ficção .
Bem, chegamos a um ponto de nossa explanação, em que se faz necessário, trazer novamente Foucault à cena. Afinal, se o historiador faz uma ficção a partir do acontecido, assim como na literatura, criando um enredo, uma trama ou uma intriga, Foucault, em seu “Eu Pierre Rivière...” não estaria querendo garantir a “originalidade” dos discursos, ao mostrar os enunciados que tentavam silenciar o assassino cruel ou o louco? Será que Ginzburg, ao fazer os seus comentários indiciários sobre o Mennochio, não estaria fazendo uma representação sobre algo já representado? Sendo assim, o verossímil de Ginzburg não deve ser confundido com a veracidade de um fato. Ginzburg ao se aproximar da verdade de um fato, pode também, reinventar o acontecido a partir de sua subjetividade, e assim, estando a fazer uma nova versão para o que aconteceu. Será que Foucault, também, não estava certo ao apontar para a não interpretação das memórias de Pierre Rivière, fazendo a escolha por garantir a supremacia dos discursos? Foucault manteve-se distante às interpretações dos discursos, no caso de Pierre Rivière, posto que: “Só a sua beleza já constitui uma justificativa suficiente para ele hoje” .
O “Eu Pierre Rivière...” de Foucault, foi publicado em 1973. Os ataques de Ginzburg a esta obra e a Foucault ocorreram com o lançamento de “O Queijo e os Vermes” em 1976, num teórico prefácio. Entretanto a resposta de Foucault não tardou, e em 1977, o filósofo francês publicava “A Vida dos Homens Infames” , reenfatizando o modelo de sua pesquisa frente aos discursos. Irônico, Foucault inicia o texto, afirmando que aquele trabalho não se traduzia numa obra de história. Era um trabalho sobre vidas breves, achadas a esmo em livros e documentos. Era um trabalho que buscava sentir a intervenção do estado (entre os anos de 1660-1760) sobre as vidas de pessoas comuns, como por exemplo, Mathurin Milan, internado no hospício por esconder-se da família e emprestar-se à usura; e o frade Jean Antoine Touzard, acusado de ser sedicioso, sodomita e ateu, até mais não poder ser .
A atuação do estado absolutista se fazia, mediante as denúncias dos próprios parentes dos acusados, de pessoas motivadas pela inveja, ira, falsidade, etc. O estado averiguava as denúncias e decidia o destino dos acusados por meio das lettres de cachet – ordem de prisão com selo real. Foucault negou-se outra vez a interpretar os discursos, optando por fazer uma recolha: “A minha incompetência voltou-me ao lirismo frugal da citação” . E arremata: “Este livro não será, pois, do agrado dos historiadores, menos ainda que os outros” .
A quem Foucault estava se referindo quando dessas palavras? A Carlo Ginzburg? Foucault alertou que sua pesquisa se tratava de existências reais, de vidas que se utilizou de palavras breves, e que, na maioria das vezes, se tratava de palavras falsas, enganadoras, injustas, exorbitantes a se utilizar do poder. E eis porque Foucault não interpretou os discursos, aquelas vidas:
De maneira que é sem dúvida para sempre impossível revê-las em si mesmas, tal como seriam “em estado livre”: já não se pode recuperá-las a não ser fixadas nas documentações, nas parcialidades táticas, nas mentiras imperiosas que supõem jogos de poder e as relações com ele .
Foucault inicia um monólogo sobre seu ponto de vista frente aos discursos e suas táticas, posto que se recusa a interpreta-los.
Dir-me-ão: ora aí está o senhor, sempre com a mesma incapacidade de transpor os limites, de passar para o outro lado, escutar e fazer ouvir a linguagem que vem de fora ou de baixo; sempre a mesma escolha, do lado do poder, do que ele diz ou faz dizer; estas vidas, por que não ir escutá-las onde falam por si próprias?
E Foucault, dentro de sua perspectiva sobre o poder, responde: O que seria dessas vidas se não tivessem cruzado o poder e provocado suas forças? Afinal, não será um dos traços fundamentais de nossa sociedade o fato de o destino tomar aqui a forma da relação com o poder, da luta com ou contra ele? . Foucault mostrou-nos com sua teoria do poder, que o poder não é centralizado, que o poder não só age de cima, mas que o poder, vem também, de baixo; que o poder não apenas proíbe, censura, mas que o poder, também induz ao prazer, permeia. O exemplo de tudo isto, vem das lettres de cachet, que significava a resposta a um poder (pedido) vindo de baixo. Foucault negou-se a interpretar os discursos, preferindo vislumbrá-los em suas relações com o poder (táticas, mentiras infâmias), tendo em vista ser melhor deixá-los na forma mesma que mais tinham dado a sentir.
Esta é a grande originalidade de Foucault. A despreocupação de se obter uma verdade, ou um método confiável que leve o historiador às mais remotas da respostas sobre um dado objeto. Foucault preferiu vislumbrar a vida, se fazendo diante de seus olhos por intermédio dos discursos e regimes de verdade. Foucault não tinha um método, uma posição em história, mas várias posições. Talvez seja isso que cause tanta irritação nos historiadores realistas. Talvez seja por isso que Foucault se transformou num “marginal” para alguns historiadores, que o viam como um bárbaro, um “Átila”, a rir do terreno da disciplina história devastado pela poeira dos fatos. Foucault não via o fato como algo natural, dado; mas, como algo construído; nada no homem é suficientemente estável para servir de base para o reconhecimento de si mesmo ou da compreensão dos outros homens. A própria noção de homem é uma invenção recente da cultura européia a partir do século XVI. O estado, o corpo, a sociedade, o sexo, a alma, a economia não são objetos estáveis, são discursos .

2. Outros olhares da Nova História Cultural

Deixando de lado as divergências entre as análises de Ginzburg versus as multifacetas de Foucault, passemos a percorrer as principais pesquisas que se apropriaram diversificadamente das pessoas comuns, das massas populares que fizeram parte dos olhares foucaultianos. Afinal, Foucault teve vários percursos na pesquisa histórica, seguindo diversos caminhos, descaminhos. “Não me pergunte quem sou, e não me diga para permanecer o mesmo”, dizia . Após ressaltar as pesquisas de Ginzburg e Natalie Davis, devemos abordar que vários historiadores se dedicaram ao estudo das classes populares, em especial os operários.
Historiador preocupado com as massas e a identidade da classe trabalhadora no contexto da era industrial, Edward P. Thompson na sua “A formação da classe operária inglesa” , dedicou-se ao estudo das resistências das classes subalternas, procurando valorizar atitudes e comportamentos que, aparentemente insignificantes, eram no fundo, reveladores de uma identidade social em construção. Thompson enfatizou a cultura popular, dando destaque à luta de classe em conexão com as tradições, os ritos e o cotidiano das classes populares num contexto histórico em transformação.
Seu livro inclui descrições vigorosas dos rituais de iniciação dos artesãos, do lugar das feiras na “vida cultural dos pobres”, do simbolismo dos alimentos e da iconografia das agitações sociais, indo de bandeiras e pedaços de pão presos a um pau até o enforcamento de efígies de pessoas odiadas .
Não se trata, neste caso, de fazer comparação entre o trabalho de Thompson com o de Foucault. Até porque, Thompson vem de uma história social inglesa, observando a classe operária sob a ótica do cultural, caso inovador dentro da tradição marxista, porém, Thompson ainda permanece com aquela visão platônica da história, procurando pelas essências que expliquem a vida . E além do mais, A Formação da Classe Operária Inglesa é anterior ao trabalho de Foucault sobre as fábricas, as escolas, os hospitais, enfim, as prisões . O relevante aqui, é que ambos estudaram os trabalhadores, os operários; a diferença é que Thompson enfatizou a cultura da classe operária, enquanto que Foucault, ao seu modo, priorizou a disciplina, o adestramento, o controle do corpo, do tempo e do espaço, além do panoptismo.

Um outro olhar sobre os homens infames (homens de classes subalternas) pode ser visto na obra de Robert Darnton, “O Grande Massacre dos Gatos” .Trata-se de um trabalho que recebeu forte influência da antropologia cultural de Geertz. Segundo os antropólogos, Darnton definiu a tarefa do historiador cultural como capturar a alteridade, e, seguindo Geertz em particular, sugeriu que se pode ler um ritual ou uma cidade, assim como se pode ler um conto folclórico ou um texto filosófico . O trabalho de Darnton é criticado pelo excesso de interpretação que ele utiliza para dá significado ao ritual praticado pelos aprendizes parisienses de 1730, contra um rebanho de gatos que não os deixavam dormirem. Nesse massacre, nem a gata da patroa escapara! Darnton vai mostrar como o massacre dos gatos significou uma sátira dos aprendizes aos patrões.
Deixemos Darnton, e voltemos a apresentar um outro historiador francês: Roger Chartier. “A História Cultural: entre práticas e representações” , uma coletânea de ensaios, é a obra mais conhecida, no campo da teoria, do historiador das práticas de leituras. O ensaio mais conhecido de Chartier intitula-se “textos, impressos, leituras”. Neste ensaio Chartier questiona o caráter todo-poderoso de um texto, e o seu poder de condicionamento sobre o leitor. Se o texto condicionasse totalmente o leitor, isto significaria fazer desaparecer a leitura enquanto prática autônoma . Chartier percebe que em toda história da leitura, existe uma tensão entre, de um lado, os escritores e editores de livros, e do outro, os leitores e suas práticas de leituras (oral, em silêncio). Por um lado, a leitura é prática criadora, atividade produtora de sentidos singulares, de significações de modo nenhum redutíveis às intenções dos autores de textos ou fazedores de livros. “A leitura é uma caça furtiva” no dizer de Michel de Certeau, afirma Chartier. Por outro lado, o leitor é sempre pensado pelo autor e pelos editores como devendo ficar sujeito a um sentido único •. Neste caso, podemos considerar que as práticas de leituras referem-se a uma irredutível liberdade dos leitores e os condicionamentos que pretendem refreá-los.
Chartier Trabalha neste ensaio com as inquietações de um autor, Fernando Rojas, sobre as interpretações diversas que os leitores fizeram da sua obra: A Celestina (1507). Há também uma releitura de “Dom Quixote”, em que um “amo” se irrita com as leituras de seu servo (Sancho) que são típicas das práticas orais. Para Rojas, existe um motivo para a má compreensão de seu livro: a intervenção desastrosa dos impressores, posto que, os autores não escrevem livros, os livros são manufaturados por escribas, que mudam as obras com ilustrações, eliminações de parágrafos, e resumos de obras.
A análise de Chartier sobre os textos, impressos e leituras têm a finalidade de mostrar a tríplice relação que envolve a produção e difusão do conhecimento: uma relação em que participam os autores dos livros, editores e leitores. Chartier conclui em sua pesquisa, que o conhecimento não se difundiu apenas entre a classe letrada; ele percebeu que os textos de uma classe elitizada podiam ser lidos por pessoas de classes subalternas, a partir dos folhetos de cordel. Chartier coloca em dúvida a dicotomia entre cultura erudita versus cultura popular, afinal, os textos passados à categoria de livro de cordel não eram populares por si mesmos, pertencendo antes a todos os gêneros, épocas e leituras, e além do mais, todos os livros antes de passarem à fase de cordel, passaram antes pelas edições, que nada tinham de populares •. Estas palavras mostram que as pessoas comuns (populares) de classes não elitizadas, também interagiam com as leituras das pessoas “nobres”. Deste modo, deve ser posto em dúvida a cultura letrada no tocante a sua área de atuação: minoritária, reservada! .
Depois de transitar-mos pela obra de Chartier, passemos a lançar olhares (breves) pela pesquisa de uma historiadora francesa, Michelle Perrot. O seu livro “Os Excluídos da História” faz um percurso sobre as pessoas que estavam na categoria que chamamos “história de baixo” (operários, mulheres, prisioneiros), posto que a historiadora em tela, procurou seguir as abordagens de Michel Foucault.
Perrot analisa a sociedade industrial, mostrando todo o processo de ordem e racionalização presentes nas fábricas, prisões e escolas. É um estudo que se volta atentamente para as fábricas e prisões, mostrando como os sujeitos eram comandados pelos conjuntos de vigilância que adestravam as pessoas, principalmente, a partir das concepções panópticas. É claro que o estudo não aponta para a sujeição dos indivíduos: há uma relação conflituosa, marcada por disputas e negociações.


CONCLUSÃO

Como podemos observar, ao longo de todo texto, o trabalho de Foucault mostrou-se inovador e original frente às pesquisas dos anos de 1970. Foucault trouxe novos objetos para a história: de total, a história passou a ser observada pelo lado do geral, sem a preocupação de oferecer explicações totais para a história. É certo que, por um lado, muitos historiadores não seguiram os olhares foucaultianos (outros sim), mas, por outro, não resistiram a trabalhar a partir dos objetos horizontados por Foucault, mesmo que fosse para criticá-lo, rejeitá-lo. Mal sabiam que estavam a fazer o que Foucault mais defendia: sair da normalidade, da igualdade, da uniformidade; colocando em dúvida tudo aquilo que está posto como o “mais correto”; preferindo o que é múltiplo, os agenciamentos móveis, às diferenças. Afinal, “quanto mais queremos conhecer a nós mesmos, tanto mais devemos renunciar a nós mesmos; e quanto mais queremos renunciar a nós mesmos, tanto mais devemos trazer à luz a verdade sobre nós mesmos (aforismo foucaultiano).


BIBLIOGRAFIA

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CONSIDERAÇÕES SOBRE O MARXISMO CIENTÍFICO

CONSIDERAÇÕES SOBRE O MARXISMO CIENTÍFICO
José do Egito Negreiros Pereira

O marxismo, idéias doutrinadas pelo pensador alemão Karl Marx (1818-1883), durante o século XIX, e que teve seu auge ao longo do século XX, por intermédio de seus seguidores (Lenin, Althusser, Eric Hobsbawm, Florestan Fernandes, entre outros), distingui-se das demais filosofias da história por ser um pensamento voltado para a práxis/prática, com a intenção de transformar a realidade. Afinal, Marx filosofava pretendendo mudar o mundo. “Tudo que é sólido se desmancha no ar”, portanto, nada dura para sempre, dizia.
O pensamento de Marx tinha por objetivo levar a humanidade ao comunismo, uma sociedade sem classes. Isto acontecia pelo fato de Marx não aceitar a exploração vertiginosa da ascendente sociedade burguesa e industrial em detrimento do proletariado. Amparado sob o método dialético, difundido naqueles tempos pela filosofia de Hegel, Marx vislumbrava em sua teleologia da história, uma esperança salvacionista para a classe operária: “As estruturas econômicas e sociais mudam”.
Além de filósofo e economista, Marx foi antes de tudo um historiador. Ele pesquisou nossas origens, cujo resultado desse estudo foi o seu “materialismo histórico”. A humanidade é determinada pelas contradições existentes entre os modos de produção, sendo que, tais divergências, provocam a luta de classe; e os fatos econômicos são a causa determinante dos fenômenos históricos e sociais. A História não é a realização da “Idéia”, como pretendia Hegel, e nem tampouco o desenrolar de um plano divino; ela é fruto da ação do homem concreto.
O Marxismo difundiu que durante a antiguidade a Europa presenciou a luta entre amos e escravos; no medievo, senhores feudais contra os servos; e, com a emergência do capitalismo, a luta passou a ser entre burgueses contra os proletários. Portanto, “a luta de classes seria o motor da história”. No entanto, antes de se atingir ao comunismo (uma sociedade sem classes), Marx dizia que era necessário passar-se pelo socialismo, uma espécie de ditadura do proletariado, e para tanto, falava aos trabalhadores por intermédio das “Internacionais”- comícios em que se debatiam o fortalecimento da classe operária. Ele pretendeu organizar os trabalhadores para que a classe operária derrotasse a estrutura capitalista. E, foi por isto que seus comentadores o classificaram como sendo um pensador do socialismo científico para que não fosse confundido com os socialistas utópicos.
Entretanto, por que Marx não foi classificado como um utópico ou romântico? Em primeiro lugar, porque ele construiu uma narrativa da história – um caminhar da humanidade – utilizando-se do método dialético com sua luta de classes; e, em segundo lugar, porque ele organizava os proletários para lutarem por seus objetivos traçados a priori. Quanto aos socialistas utópicos, estes pensavam em transformar o mundo de forma isolada, individual: cada burguês, sensibilizado pelo sofrimento de seus empregados, tenderiam a diminuir a jornada de trabalho, a aumentar os salários, a construir melhores moradias, enfim, buscariam melhorar de qualquer maneira a vida de seus trabalhadores. É interessante observarmos que, do ponto de vista dos utópicos, as mudanças sociais viriam de cima (por intermédio dos ricos), enquanto que para Marx, a revolução que seria social e econômica, deveria começar pela iniciativa operária, portanto, deveria ser uma transformação que começaria de baixo (com os trabalhadores).
Devemos ter o cuidado quando formos classificar a obra de Marx em algum modelo ideológico. E sempre que fizermos alguma classificação, deve-se explicar o porquê de tal escolha, como pretendeu-se aqui, dentro de nossos limites teóricos, em que classificamos o pensamento de Marx como sendo de um Marxismo ou socialismo científico. A unanimidade entre os críticos é que Marx nunca foi interpretado, afinal, os grandes acontecimentos socialistas aconteceram depois de sua morte, e várias foram as deturpações, como as realizadas por Josef Stálin, durante sua ditadura na extinta URSS, atual Rússia.
KARL FRIEDRICH VON MARTIUS E FRANCISCO ADOLFO DE VARNHAGEN: O BRASIL E A INFELIZ PRESENÇA NEGRA

José do Egito N. Pereira
(Me. UFCG)
SESC
www.sescpb.com.br


Todo brasileiro, mesmo alvo, de cabelo louro, traz na alma e no corpo a influência direta ou vaga e remota do africano. (...). Em tudo que é expressão sincera de vida, trazemos quase todos a marca da influência negra.

Gilberto Freyre


A escrita da história brasileira emergiu oficialmente com a fundação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) em 1838. O objetivo deste instituto de pesquisa era o de produzir uma história para a nação imperial brasileira e colocar o Brasil na marcha do progresso e no círculo dos status de nação civilizada. Portanto era preciso conhecer e construir uma história para a jovem nação independente.
Para levar adiante o projeto de uma escrita da história do Brasil, no ano de 1840, a revista do IHGB lançou um concurso de premiação para o melhor plano de escrita da história do Brasil, cuja iniciativa veio do secretário perpétuo do IHGB, o cônego Januário da Cunha Barbosa. O Vencedor do concurso foi o naturalista alemão Karl Friedrich Philipp von Martius. “Como se deve escrever a história do Brasil” (Dissertação vencedora) foi escrita para mostrar aos olhos dos leitores europeus uma parte do mundo ainda mal conhecida. A principal idéia de “Como se deve escrever a história do Brasil” diz respeito à mescla das três raças como modelo para a história do Brasil:
Qualquer que se encarregar de escrever a História do Brasil, paiz que tanto promete, jamais deverá perder de vista quaes os elementos que ahi concorrerão para o desenvolvimento do homem. São porém estes elementos de natureza muito diversa, tendo para a formação do homem convergido de um modo particular tres raças, a saber: a còr de cobre ou americana, a branca ou caucasiana, e enfim a preta ou ethiopica. Do encontro, da mescla, das relações mútuas e mudanças d’essas tres raças, formou-se a actual população cuja história por isso mesmo tem um cunho muito particular .

Karl Friedrich Philipp von Martius, chamado pelos letrados como “o amigo do Brasil”, dispensou em seus discursos uma análise sobre a mescla das relações raciais no Brasil, procurando enfatizar os horizontes de uma democracia racial brasileira comandada pela hegemonia branca, que levaria, por ser uma raça polida, os princípios de civilização às raças americanas e etíopes. Ao tratar da raça africana ou etíope em suas relações com a História do Brasil, Karl von Martius, teceu breves considerações, ao contrário do que havia feito em relação ao indígena. No tocante ao negro africano, ele nos ofereceu poucos dados e propôs algumas poucas questões. Os questionamentos lançados pelo naturalista bávaro concentravam-se praticamente em torno do tráfico de escravos, os seus hábitos e costumes, os defeitos e virtudes próprios da sua raça e suas influências no caráter do português, o elemento colonizador.
Cada uma das particularidades physicas e moraes, que distinguem as diversas raças, offerece a este respeito um motor especial; e tanto maior será sua influencia para o desenvolvimento commum, quanto maior fôr a energia, número e dignidade da sociedade de cada uma d’essas raças. D’isso necessariamente se segue o portuguez, que, como descobridor, conquistador e Senhor, poderosamente influiu n’aquelle desenvolvimento; o portuguez, que deu as condições e garantias morais e físicas para um reino independente; que o português se apresenta como o mais poderoso e essencial motor
O português emergiu na escrita de Martius como o “poderoso e essencial motor” da obra colonial no Brasil. Isto é verificado, inclusive, pela forma da escrita ortográfica de Martius, que descreve o “senhor” português, com um S (de senhor) maiúsculo. O sangue da “raça branca ou caucasiana” influiu de maneira magistral no desenvolvimento da futura nação brasileira . Era o português quem dava as condições e garantias morais e físicas para um reino independente que foi se formando caudalosamente ao longo de três séculos. Sob o domínio dessa “raça caucasiana”, segundo Martius, as raças “etiópicas” e “indígenas” reagiram positivamente na obra colonial instaurada nos trópicos. Para mostrar o papel civilizador do homem branco no encontro com as outras duas raças, o autor evocou a imagem do português como um rio caudaloso que iria absorver todos os outros confluentes (afluentes) menores, os índios e os negros.
A mescla das raças representaria para Martius uma obra divina: a Providência teria reservado este destino histórico ao Brasil. A realização deste destino, que deveria incluir para a letra a parte não civilizada – os índios e os negros – é considerada como elemento do amálgama brasileiro, estava assim para ser executada .
O debate em torno da mesclagem de raças constituiu num dos principais desafios para os pesquisadores do IHGB. Esta operação no sentido de incluir a parte não civilizada, as raças índia e etiópica seria realizada a partir de uma atividade na qual Martius havia se aventurado durante sua viagem pelo Brasil: o estudo etnográfico. Os trabalhos etnográficos objetivavam conhecer os povos que careciam de história, além de especular sobre a natureza do homem. No ponto de vista do botânico Martius, parecia ser através desta atividade que se poderia realizar a tarefa tão almejada e cuidadosamente pensada pelos letrados do IHGB, a de estabelecer a inserção do negro e principalmente do índio em uma escrita da história do Brasil. “A investigação etnográfica assim tornava-se parte do projeto de ampliação do círculo civilizatório que faria recuar a barbárie” .
O que se verificou nos trabalhos de Martius, em relação à preocupação etnográfica sobre os negros foi algo praticamente nulo: os trabalhos etnográficos do botânico alemão dizem respeito unicamente aos índios, já que sua abordagem sobre os negros no plano da história do Brasil repercutiu em um silêncio para os letrados do IHGB. Entretanto, Martius deixou - em pleno século XIX - uma intrigante pergunta para as gerações futuras de pesquisadores que se dispusesse a escrever sobre o negro brasileiro. A questão chave sobre este elemento formador da nacionalidade brasileira, para este viajante bávaro, era se o Brasil teria tido um desenvolvimento diferente sem a introdução dos negros escravos? Esta era a pergunta que deveria reger o ofício do historiador preocupado em escrever a história do Brasil. Esta questão iria atormentar gerações de historiadores e outros pensadores ao longo da história da escrita da História do Brasil. Contudo, Martius não se mostrou indeciso a esta questão e expôs o que pensara:
Não há duvida que o Brazil teria tido um desenvolvimento muito differente sem a introducção dos escravos negros. Se para melhor ou para peior, este problema se resolverá para o historiador, depois de ter tido occasião de ponderar todas as influencias, que tiveram os escravos africanos no desenvolvimento civil, moral e político da presente população. Mas, no atual estado das coisas, mister é indagar a condição dos negros importados, seus costumes, suas opiniões civis, seus conhecimentos naturais, preconceitos e superstições, os defeitos e virtudes próprias à sua raça em geral, etc., se demonstrar quisermos como tudo reagiu sobre o Brasil .

O historiador que desenvolverá o projeto de escrever uma história para o Brasil, de acordo com a perspectiva proposta por Martius, será o “visconde de Porto Seguro”, natural de Sorocaba, Francisco Adolfo de Varnhagen (1816-1878), historiador considerado (por sua pesquisa metódica) o Heródoto brasileiro, apesar de existir outros estudos antes de sua “História Geral do Brasil” (1850), como os de Pero de Magalhães Gândavo, frei Vicente de Salvador, Sebastião da Rocha Pita, e Robert Southey, que escreveram respectivamente, “história da província de Santa Cruz” (1576), “história do Brasil” (1627), “história da América Portuguesa” (1730) e “história do Brasil” (1810) .
Francisco Adolfo de Varnhagen, o historiador “protegido” da corte de D. Pedro II, também apresenta uma escrita historiográfica voltada para o colonizador português. Sua pesquisa será voltada para o terreno do conquistador europeu que deve impor a sua superioridade étnica, cultural e religiosa. Afinal:
Se o português venceu militarmente os seus adversários, se conquistou seus territórios e os escravizou e exterminou, é porque é superior. (...). A vitória confirma uma superioridade presumida. E, se na luta colonial os brancos venceram, a jovem nação quer ser também vencedora e se identificar étnica, social e culturalmente com o branco. (...). Os brancos são portadores de tudo aquilo de que uma nação precisa para se constituir soberanamente. Aos vencidos resta a exclusão, a escravidão, a repressão e a assimilação pela miscigenação, isto é, pelo branqueamento racial e cultural.
Em História geral do Brasil, Varnhagen dedicou aos negros poucas páginas, assim como von Martius em sua monografia. Para o Visconde de Porto Seguro, os traficantes negreiros fizeram um mal ao Brasil entulhando as suas cidades do litoral e engenhos de negrarias. Na sua leitura, como a colonização africana teve uma grande entrada no Brasil, podendo ser considerada um dos elementos da sua população, “julgamos do nosso dever consagrar algumas linhas neste lugar a tratar da origem desta gente, a cujo vigoroso braço deve o Brasil principalmente os trabalhos do fabrico do açúcar, e modernamente os da cultura do café”. Entretanto, rogou o autor aos céus:
Fazemos votos para que chegue um dia em que as cores de tal modo se combinem que venha desaparecer totalmente no nosso povo os característicos da origem africana, e, por conseguinte a acusação da procedência de uma geração, cujos troncos no Brasil vieram conduzidos em ferros do continente fronteiro, e sofreram os grilhões da escravidão, embora talvez com mais suavidade do que nenhum outro país da América, começando pelos Estado Unidos do Norte, onde o anátema acompanha não só a condição e a cor como a todas as suas gradações .
Varnhagen não era a favor da democracia racial, como almejou o seu contemporâneo Karl Von Martius – que elaborou as bases para se escrever uma história para o Brasil. Aliás, o negro sempre foi menosprezado na escrita de Varnhagen. “Se este não aceitava a escravidão, era, sobretudo porque ela implicava a presença negra no Brasil, em desprestigio para a raça brasileira, que ele desejava que fosse branca pura” .
Para Varnhagen, ao passar tais “gentes” ao Brasil, como escravizados, na verdade estes melhoraram de sorte. Embora a escravidão fosse injusta, por não ser filantrópica, e fosse uma ofensa à humanidade, por ser um ataque ao indivíduo, à família e ao Estado de onde foram arrancados, os negros, ressaltou o autor, melhoraram de sorte ao entrar em contato com gente mais polida, com a bandeira da civilização e a cruz do cristianismo. Por esse motivo, os negros da América eram melhores do que os africanos. Dessa forma, a raça africana tem na América produzido mais homens prestimosos e até notáveis, do que no Continente donde é oriunda. Eles se destacaram pela força física, o gênio alegre para suportar a sua sina, pela capacidade de trabalho .
Quanto à origem dos cativos trazidos para o Brasil, o autor avisou que havia poucos dados para montar um catálogo extenso das diferentes nações de “raça preta”, que os colonos preferiram nesta ou naquela época, e para esta ou aquela região. Mesmo assim, podia-se afirmar que:
(...) a importação dos colonos pretos para o Brasil, feita pelos traficantes, teve lugar de todas as nações não só do litoral da África que decorre desde o Cabo Verde para o sul, e ainda além do Cabo da boa Esperança, nos territórios e costas de Moçambique; como também não menos de outras dos sertões que com elas estavam em guerra, e às quais faziam muitos prisioneiros, sem os matarem. Os mais conhecidos do Brasil eram provindos de Guiné (em cujo número só compreendiam berberes, jalofos, felupos, mandingas), do Congo, de Moçambique, e da costa da Mina, donde eram o maior número dos que entravam na Bahia, que ficava fronteira e com mui fácil navegação; motivo porque nesta cidade tantos escravos aprendiam menos o português, entendendo-se uns com outros em nagô .
Nessas nações, segundo Varnhagen, a idéia de liberdade individual não estava assegurada, uma vez que os mais fortes vendiam os mais fracos, os pais vendiam os filhos e os vencedores os inimigos submetidos e, por esta razão, a escravidão no Brasil tornou-se um alento para os africanos.
Sobre as práticas religiosas dos “povos negros”, Varnhagen comentou que havia em alguns ideais de islamismo, e até já de cristianismo, em virtude da vizinhança dos estabelecimentos e feitorias dos europeus. Todavia, a maioria não passava de “gentios ou idólatras” porque “andavam nus, lavavam-se amiúdo, e, muito deles, golpeavam a cara por distintivo de nação”. Eles adoravam ídolos, outros animais, depositavam sua fé em calundus, quigilas e feitiços, realizavam sacrifícios e oferendas aos que possuíam muito “charlatanismo para se inculcarem por seus sacerdotes” . Tais costumes horrorizavam Varnhagen, criado dentro dos preceitos da civilização e da fé cristã.
Em relação à pergunta lançada por von Martius sobre “se o Brasil teria tido um desenvolvimento diferente, ou seja, melhor, sem a introdução dos negros escravos”,
Varnhagen respondeu enfaticamente de forma positiva. O desenvolvimento do Brasil teria sido outro sem a presença dessa “gente”. A colonização africana da colônia constituiu um erro, em sua opinião. No país, havia perpetuado um regime de trabalho servil que ele nem conseguia qualificar, mas de que não se podia abrir mão, sem causar grandes males para a nação. Para o autor, o índio deveria ter sido usado como mão-de-obra nas lavouras e engenhos. Neste aspecto, História geral do Brasil teceu críticas e ataques aos jesuítas e defendeu a ação dos bandeirantes.
Portanto, podemos perceber que Varnhagen não considerava que a presença da raça negra tivesse sido boa, favorável à colonização portuguesa no Brasil. Talvez, segundo o autor, esta poderia ter sido evitada, ou com o abandono da cultura do açúcar, ou então com o trabalho de brancos e índios entre cinco e nove horas da manhã e das quatro às seis horas da tarde, descansando ou empregando em casa as horas mais quentes do dia, como faziam os índios antes do desembarque dos europeus. Um projeto colonial (e nacional) sem negros seria o ideal para o autor de História geral do Brasil .
Varnhagen acusou a falsa filantropia dos missionários da Companhia de Jesus de impedir a escravidão vermelha. Os bandeirantes paulistas, em sua opinião, que caçavam os “gentios” pelo sertão foram menos nocivos ao Brasil do que os traficantes de escravos negros e os jesuítas. Contudo, nas palavras do padre Antônio Vieira, o negro devia se sentir conformado por ter sido escolhido para realizar os trabalhos forçados e sofrer nos trabalhos da cana-de-açúcar, posto que, aquela se apresentava como uma missão semelhante à de Cristo. O padre Vieira viu no negro o Cristo da civilização; “Não ha trabalho nem genero de vida no mundo mais parecido a Cruz e à Paixão de Christo que o vosso em um desses engenhos”
O Padre Antônio Vieira, aconselhava os negros, em seus sermões, o qual ilusória era a escravidão que os oprimia no mundo, se orassem conformados ao pai de todas as criaturas. Aconselhava aos negros que sofressem como os hebreus desterrados na Babilônia, e assim, seriam à semelhança daqueles, contemplados por Deus no Paraíso; que imitassem ao cristo crucificado, sacrificando-se na terra pela humanidade, sujeitando-se sem rancor aos castigos senhoriais para assim, obter a salvação eterna: verdadeira liberdade .
Esta era a explicação jesuítica para justificar a escravidão do negro no Brasil: uma explicação religiosa que protegia os índios da escravidão, e que, por outro lado, garantia o livre comércio dos escravos negros, causando no futuro a insatisfação de Varnhagen, que considerava uma lástima a presença da raça negra na jovem nação. Segundo Varnhagen: “A filantropia jesuítica em relação ao indígena era mais palavra do que exemplo – eles próprios usavam o índio como escravo. Sua proteção ao indígena deixou a colônia à míngua de braços, o que forçou a importação de africanos” . Varnhagen era contrário à escravidão, pois, o trabalho escravo não causava no homem escravizado o amor à pátria, e, mesmo que a escravidão fosse indispensável, que ela tivesse sido estruturada sobre o elemento indígena. Afinal:
Para ele, a colonização portuguesa teria sido mais bem-sucedida se não tivesse tido que contar com a presença negra. Varnhagen lamenta o que a escravidão representou em termos raciais: a presença africana no Brasil. O latifúndio e a escravidão seriam mais toleráveis se o escravo fosse o índio, que a pseudofilantropia jesuítica impediu. O que ele não aprecia é a negraria que enche as cidades e engenhos brasileiros .
Mas, por que Varnhagen pensava desta forma? Varnhagen foi um intelectual do século XIX, o século da Ciência, do Positivismo, do Evolucionismo, das teorias do Darwinismo Social e da Miscigenação. A emergência do mencionado século influenciou (moldou) as condições e possibilidades discursivas do pensar de Varnhagen. Se ele não concordava com a presença negra no Brasil, as teorias evolucionistas e de miscigenação lhes dava a possibilidade de almejar para o futuro da jovem nação, um país totalmente branco. A situação era paradoxal: a presença negra era indesejável, mas, embora alguns intelectuais discordassem, era necessário extinguir tal presença pela miscigenação.
Neste contexto, da virada do século XIX para o século XX, teorias afirmarão a hegemonia branca por intermédio de discursos “científicos”: uns falarão a favor da miscigenação, outros serão contrários; projetos sócio-culturais se encarregarão com o transcorrer dos idos do século XX, em discutir a democracia racial, tudo por uma causa: externar a identidade do Brasil, valorizando suas cores e sua cultura.


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