segunda-feira, 15 de novembro de 2010

OS HOMENS INFAMES NA NOVA HISTÓRIA CULTURAL: OLHARES

OS HOMENS INFAMES NA NOVA HISTÓRIA CULTURAL: OLHARES

José do Egito Negreiros Pereira
egito78@hotmail.com




“Quando as pessoas seguem Foucault, quando têm paixão por ele, é porque têm algo a ver e a fazer com ele, em seu próprio trabalho, na sua existência autônoma. Não é apenas uma questão de compreensão, mas de intensidade, de ressonância, de acorde musical”.

Gilles Deleuze




Resumo

O objetivo deste trabalho é demonstrar como a partir da década de 1970 a pesquisa historiográfica passou por profundas mudanças sob a égide dos “olhares” feitos, não por obra de um historiador de carreira, mas por um filósofo: Michel Foucault. Não se trata de apresentar, aqui, uma análise sobre as principais obras do filósofo francês, mas, de mostrar como a pesquisa de Foucault sobre as pessoas comuns (homens infames ou os esquecidos da história) influenciou uma série de pesquisas que tinham por objetivo caminhar nos seus passos (Michelle Perrot), ou para, a partir de um mesmo olhar (um moleiro friuliano, “Mennochio”, versus um “Pierre Rivière”) criticar os discursos de Foucault, a exemplo de Carlo Ginzburg. É claro que outros historiadores preferiram tratar as classes populares de acordo com seus respectivos desejos, deixando de lado os discursos, e dando ênfase a cultura, como no caso de E. P. Thompson; outros preferiram tratar a cultura, para além do erudito/popular, demonstrando as autonomias quando das práticas de leituras (Chartier); e outros, preferiram ser envolvidos pelo “manto” da antropologia cultural, dando-se prioridade às narrativas interpretativas (Darnton). Mas todos, à sua maneira, seguiram como Michel Foucault, fazendo história a partir de um mesmo objeto: a história vista de baixo, a história das classes populares, das pessoas comuns, dos homens infames.

Palavras-Chave: Michel Foucault, Pessoas Comuns, Nova História Cultural.


INTRODUÇÃO

Este texto, talvez, possa ser encarado, com vistas ao título, com um pouco de pretensão, posto que, pretende-se colocar numa mesma narrativa, historiadores conceituados no campo da história cultural pós-anos 1970 (a exemplo de Ginzburg, Thompson, Chartier, Natalie Zemon Davis, entre outros) sob a maestria do “olhar” de Michel Foucault, no tocante ao objeto principal da história: o homem. Talvez seja mesmo uma audácia. Logo Foucault! Aquele “cavaleiro bárbaro”, sem método, sem pretensão de objetividade, de verdade, tão duramente criticado por Ginzburg. Logo Foucault! Aquele intruso, que adentrou no campo da história, não para enaltecer as pesquisas dos historiadores da 2ª geração dos Annales, mas para minar o campo da disciplina que o excluía. Por mais que o trabalho de Foucault tenha sido alvo de muitas críticas, não dá para deixar de lado a profundeza de sua originalidade no campo da disciplina que teimava em renegá-lo: os homens infames, os “loucos”, os prisioneiros... São a prova do pioneirismo de Foucault no terreno da história. Este texto tem o objetivo de alçar “vôo”, a partir das “migalhas de Foucault”, sobre as principais pesquisas no âmbito da Nova História Cultural dos últimos anos; estas pesquisas nem sempre se utilizaram dos “insights” foucaultianos (poder, saber, disciplina...), mas por outro lado, fizeram uso de seu foco de abordagem em história: o prisioneiro, o sujeito processado, o trabalhador da fábrica, etc. Enfim, deste olhar sobre o homem comum (de origem subalterna) diante do poder (do estado, da fábrica, da inquisição, ou de um inimigo qualquer) os historiadores sócio-culturais não escaparam. Foram todos acertados pela flecha de Michel Foucault.


1. Michel Foucault versus Carlo Ginzburg: embates na Nova História Cultural

O livro que levou Foucault à fama e ao reconhecimento intelectual foi a “histoire de la folie à i âge classique” . A obra que passou inicialmente quase despercebida entre os historiadores, não pretendia fazer a história dos loucos ao lado, em presença ou em convívio com as pessoas tidas por “normais”; nem a história da razão em oposição à loucura. Tratava-se de levantar a história dessa divisão incessante, porém sempre modificada; tratava-se, enfim, de mostrar como a loucura fora percebida em diversos momentos históricos, da Renascença ao século XIX. O que Foucault nos mostrou foi que a loucura não é uma categoria, um objeto natural; ele nos mostrou que para cada tempo, a loucura teve um significado, e que, foi somente a partir do século XIX, que a medicina passou a ter o poder sobre o campo de saber da loucura, afixando nela, o rótulo de “doença mental”, indicação que tem o poder da interdição.
Foucault passou a fragmentar o campo da história, a fazer uma história geral. Na visão de Paul Veyne, Foucault revolucionou a história e se firmou como um dos teóricos mais utilizados pelos novos historiadores. O resultado da influência de Foucault (juntamente com as contribuições de Thompson, Natalie Davis, Geertz e Hayden White) dará início a uma nova visão dominante sobre a história cultural: “A Nova História Cultural”, que entrou em uso no final da década de 1989, quando o historiador norte-americano Lynn Hunt publicou um livro com esse nome (A Nova História Cultural), resultado da reunião de vários ensaios . A Nova História Cultural mostrou-se ser uma modalidade de fazer história no plural. Tal modalidade:
Não recusa de modo algum as expressões culturais das elites ou das classes letradas, mas revela especial apreço, tal como a história das mentalidades, pelas manifestações de massas anônimas: as festas, as resistências, as crenças heterodoxas... Em uma palavra, A Nova História Cultural revela uma especial afeição pelo informal, e, sobretudo pelo popular .
Não tomaremos neste texto, a postura de fazer uma reminiscência das obras de Foucault, mas defenderemos quais textos aproximam Foucault dos demais historiadores culturais. E um exemplo explícito desta aproximação se deu em 1973, quando Foucault publicou o “Eu Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão”, estudo sobre um matricida francês. Esta obra foi publicada pela coleção francesa archives, série voltada para a publicação de fontes sobre casos, sobretudo judiciária. Para Vainfas a micro-história foi preconizada nesta coleção, da qual fizera parte Foucault.
Se a “História da Loucura” já trouxera algumas polêmicas para o currículo de Michel Foucault, por ele explanar uma “arqueologia do silêncio”, o “Eu Pierre Rivière...”, também não escapou às críticas, em especial às de Carlo Ginzburg, que acusou Foucault de dá prioridade aos discursos judiciário e psiquiátrico, deixando para segundo plano as memórias do assassino, que viveu no século XIX.
Segundo Ginzburg, a possibilidade de interpretação sobre o discurso de Pierre Riviére foi totalmente excluída de forma explícita, porque, segundo Foucault, interpretar aquele texto, equivaleria a alterá-lo, reduzi-lo a uma “razão” estranha a ele . A “irritação” ou sátira do historiador italiano para com Foucault parece visível no prefácio do seu livro, publicado em 1976, posto que, a “arqueologia do silêncio” de Foucault, transformou-se, na opinião de Ginzburg, em silêncio puro e simples, por vezes acompanhado de uma muda contemplação estetizante .
“O Queijo e os Vermes”, livro que fez a fama da modalidade historiográfica da micro-história, se propôs a ser um projeto diferente do realizado por Foucault, em seu “Pierre Rivière...”. Utilizando-se do método indiciário e dos filtros da circularidade cultural, Ginzburg, analisou um processo inquisitorial que tinha como réu, um simples moleiro friuliano, chamado Domenico Scandella, conhecido por Mennocchio. No livro, Ginzburg demonstrou uma excelente habilidade de lidar com as fontes, tentando estabelecer relações de verossimilhança entre a vida camponesa da Itália quinhentista (a pobreza dos camponeses, o papel do moleiro em uma sociedade arcaica, os lugares de sociabilidade, os valores sociais e espirituais...) com questões que o historiador pretendia descobrir. Literalmente, Ginzburg comandou sua pesquisa como um detetive, fazendo perguntas aos processos, numa tentativa de se aproximar à veracidade dos fatos. O livro, que foi distribuído em 62 capítulos, mais parece uma obra de ficção, tal foi a leveza do enredo.
Nesta mesma linha de pesquisa, Natalie Zemon Davis, em “O Retorno de Martin Guerre” , retratou o caso de um impostor, que no século XVI tomou o lugar de uma outra pessoa, e viveu maritalmente com uma esposa que de direito não “lhe pertencia”. O livro mais parece uma trama de ficção, do que uma obra de história. Ao longo de 12 capítulos, Natalie Davis, colocou ao leitor um enredo fascinante, onde se misturam amor, ódio, imposturas, conveniências, comédia e tragédia; onde em clima de suspense, prevalece à história do impostor “Martin Guerre”, sobretudo, mas também a do verdadeiro Martin Guerre.
O livro de Davis não escapou às críticas, dada às montagens, as seleções, os recortes, e a própria estrutura da “intriga” que a historiadora criou. Davis chegou mesmo a afirmar, em resposta as críticas, que o historiador cria o passado, e que a história é uma ficção, tal como a literatura. Mas uma ficção trabalhada a partir daquilo que existe . Diante desta polêmica entre ficção e história, Paul Ricoeur, chegou mesmo a admitir a ficcionalização da história, presente na capacidade imaginária das narrativas de construir uma visão sobre o passado e de se colocar como substituta a ele. A ficção é quase história, assim como a história é quase ficção .
Bem, chegamos a um ponto de nossa explanação, em que se faz necessário, trazer novamente Foucault à cena. Afinal, se o historiador faz uma ficção a partir do acontecido, assim como na literatura, criando um enredo, uma trama ou uma intriga, Foucault, em seu “Eu Pierre Rivière...” não estaria querendo garantir a “originalidade” dos discursos, ao mostrar os enunciados que tentavam silenciar o assassino cruel ou o louco? Será que Ginzburg, ao fazer os seus comentários indiciários sobre o Mennochio, não estaria fazendo uma representação sobre algo já representado? Sendo assim, o verossímil de Ginzburg não deve ser confundido com a veracidade de um fato. Ginzburg ao se aproximar da verdade de um fato, pode também, reinventar o acontecido a partir de sua subjetividade, e assim, estando a fazer uma nova versão para o que aconteceu. Será que Foucault, também, não estava certo ao apontar para a não interpretação das memórias de Pierre Rivière, fazendo a escolha por garantir a supremacia dos discursos? Foucault manteve-se distante às interpretações dos discursos, no caso de Pierre Rivière, posto que: “Só a sua beleza já constitui uma justificativa suficiente para ele hoje” .
O “Eu Pierre Rivière...” de Foucault, foi publicado em 1973. Os ataques de Ginzburg a esta obra e a Foucault ocorreram com o lançamento de “O Queijo e os Vermes” em 1976, num teórico prefácio. Entretanto a resposta de Foucault não tardou, e em 1977, o filósofo francês publicava “A Vida dos Homens Infames” , reenfatizando o modelo de sua pesquisa frente aos discursos. Irônico, Foucault inicia o texto, afirmando que aquele trabalho não se traduzia numa obra de história. Era um trabalho sobre vidas breves, achadas a esmo em livros e documentos. Era um trabalho que buscava sentir a intervenção do estado (entre os anos de 1660-1760) sobre as vidas de pessoas comuns, como por exemplo, Mathurin Milan, internado no hospício por esconder-se da família e emprestar-se à usura; e o frade Jean Antoine Touzard, acusado de ser sedicioso, sodomita e ateu, até mais não poder ser .
A atuação do estado absolutista se fazia, mediante as denúncias dos próprios parentes dos acusados, de pessoas motivadas pela inveja, ira, falsidade, etc. O estado averiguava as denúncias e decidia o destino dos acusados por meio das lettres de cachet – ordem de prisão com selo real. Foucault negou-se outra vez a interpretar os discursos, optando por fazer uma recolha: “A minha incompetência voltou-me ao lirismo frugal da citação” . E arremata: “Este livro não será, pois, do agrado dos historiadores, menos ainda que os outros” .
A quem Foucault estava se referindo quando dessas palavras? A Carlo Ginzburg? Foucault alertou que sua pesquisa se tratava de existências reais, de vidas que se utilizou de palavras breves, e que, na maioria das vezes, se tratava de palavras falsas, enganadoras, injustas, exorbitantes a se utilizar do poder. E eis porque Foucault não interpretou os discursos, aquelas vidas:
De maneira que é sem dúvida para sempre impossível revê-las em si mesmas, tal como seriam “em estado livre”: já não se pode recuperá-las a não ser fixadas nas documentações, nas parcialidades táticas, nas mentiras imperiosas que supõem jogos de poder e as relações com ele .
Foucault inicia um monólogo sobre seu ponto de vista frente aos discursos e suas táticas, posto que se recusa a interpreta-los.
Dir-me-ão: ora aí está o senhor, sempre com a mesma incapacidade de transpor os limites, de passar para o outro lado, escutar e fazer ouvir a linguagem que vem de fora ou de baixo; sempre a mesma escolha, do lado do poder, do que ele diz ou faz dizer; estas vidas, por que não ir escutá-las onde falam por si próprias?
E Foucault, dentro de sua perspectiva sobre o poder, responde: O que seria dessas vidas se não tivessem cruzado o poder e provocado suas forças? Afinal, não será um dos traços fundamentais de nossa sociedade o fato de o destino tomar aqui a forma da relação com o poder, da luta com ou contra ele? . Foucault mostrou-nos com sua teoria do poder, que o poder não é centralizado, que o poder não só age de cima, mas que o poder, vem também, de baixo; que o poder não apenas proíbe, censura, mas que o poder, também induz ao prazer, permeia. O exemplo de tudo isto, vem das lettres de cachet, que significava a resposta a um poder (pedido) vindo de baixo. Foucault negou-se a interpretar os discursos, preferindo vislumbrá-los em suas relações com o poder (táticas, mentiras infâmias), tendo em vista ser melhor deixá-los na forma mesma que mais tinham dado a sentir.
Esta é a grande originalidade de Foucault. A despreocupação de se obter uma verdade, ou um método confiável que leve o historiador às mais remotas da respostas sobre um dado objeto. Foucault preferiu vislumbrar a vida, se fazendo diante de seus olhos por intermédio dos discursos e regimes de verdade. Foucault não tinha um método, uma posição em história, mas várias posições. Talvez seja isso que cause tanta irritação nos historiadores realistas. Talvez seja por isso que Foucault se transformou num “marginal” para alguns historiadores, que o viam como um bárbaro, um “Átila”, a rir do terreno da disciplina história devastado pela poeira dos fatos. Foucault não via o fato como algo natural, dado; mas, como algo construído; nada no homem é suficientemente estável para servir de base para o reconhecimento de si mesmo ou da compreensão dos outros homens. A própria noção de homem é uma invenção recente da cultura européia a partir do século XVI. O estado, o corpo, a sociedade, o sexo, a alma, a economia não são objetos estáveis, são discursos .

2. Outros olhares da Nova História Cultural

Deixando de lado as divergências entre as análises de Ginzburg versus as multifacetas de Foucault, passemos a percorrer as principais pesquisas que se apropriaram diversificadamente das pessoas comuns, das massas populares que fizeram parte dos olhares foucaultianos. Afinal, Foucault teve vários percursos na pesquisa histórica, seguindo diversos caminhos, descaminhos. “Não me pergunte quem sou, e não me diga para permanecer o mesmo”, dizia . Após ressaltar as pesquisas de Ginzburg e Natalie Davis, devemos abordar que vários historiadores se dedicaram ao estudo das classes populares, em especial os operários.
Historiador preocupado com as massas e a identidade da classe trabalhadora no contexto da era industrial, Edward P. Thompson na sua “A formação da classe operária inglesa” , dedicou-se ao estudo das resistências das classes subalternas, procurando valorizar atitudes e comportamentos que, aparentemente insignificantes, eram no fundo, reveladores de uma identidade social em construção. Thompson enfatizou a cultura popular, dando destaque à luta de classe em conexão com as tradições, os ritos e o cotidiano das classes populares num contexto histórico em transformação.
Seu livro inclui descrições vigorosas dos rituais de iniciação dos artesãos, do lugar das feiras na “vida cultural dos pobres”, do simbolismo dos alimentos e da iconografia das agitações sociais, indo de bandeiras e pedaços de pão presos a um pau até o enforcamento de efígies de pessoas odiadas .
Não se trata, neste caso, de fazer comparação entre o trabalho de Thompson com o de Foucault. Até porque, Thompson vem de uma história social inglesa, observando a classe operária sob a ótica do cultural, caso inovador dentro da tradição marxista, porém, Thompson ainda permanece com aquela visão platônica da história, procurando pelas essências que expliquem a vida . E além do mais, A Formação da Classe Operária Inglesa é anterior ao trabalho de Foucault sobre as fábricas, as escolas, os hospitais, enfim, as prisões . O relevante aqui, é que ambos estudaram os trabalhadores, os operários; a diferença é que Thompson enfatizou a cultura da classe operária, enquanto que Foucault, ao seu modo, priorizou a disciplina, o adestramento, o controle do corpo, do tempo e do espaço, além do panoptismo.

Um outro olhar sobre os homens infames (homens de classes subalternas) pode ser visto na obra de Robert Darnton, “O Grande Massacre dos Gatos” .Trata-se de um trabalho que recebeu forte influência da antropologia cultural de Geertz. Segundo os antropólogos, Darnton definiu a tarefa do historiador cultural como capturar a alteridade, e, seguindo Geertz em particular, sugeriu que se pode ler um ritual ou uma cidade, assim como se pode ler um conto folclórico ou um texto filosófico . O trabalho de Darnton é criticado pelo excesso de interpretação que ele utiliza para dá significado ao ritual praticado pelos aprendizes parisienses de 1730, contra um rebanho de gatos que não os deixavam dormirem. Nesse massacre, nem a gata da patroa escapara! Darnton vai mostrar como o massacre dos gatos significou uma sátira dos aprendizes aos patrões.
Deixemos Darnton, e voltemos a apresentar um outro historiador francês: Roger Chartier. “A História Cultural: entre práticas e representações” , uma coletânea de ensaios, é a obra mais conhecida, no campo da teoria, do historiador das práticas de leituras. O ensaio mais conhecido de Chartier intitula-se “textos, impressos, leituras”. Neste ensaio Chartier questiona o caráter todo-poderoso de um texto, e o seu poder de condicionamento sobre o leitor. Se o texto condicionasse totalmente o leitor, isto significaria fazer desaparecer a leitura enquanto prática autônoma . Chartier percebe que em toda história da leitura, existe uma tensão entre, de um lado, os escritores e editores de livros, e do outro, os leitores e suas práticas de leituras (oral, em silêncio). Por um lado, a leitura é prática criadora, atividade produtora de sentidos singulares, de significações de modo nenhum redutíveis às intenções dos autores de textos ou fazedores de livros. “A leitura é uma caça furtiva” no dizer de Michel de Certeau, afirma Chartier. Por outro lado, o leitor é sempre pensado pelo autor e pelos editores como devendo ficar sujeito a um sentido único •. Neste caso, podemos considerar que as práticas de leituras referem-se a uma irredutível liberdade dos leitores e os condicionamentos que pretendem refreá-los.
Chartier Trabalha neste ensaio com as inquietações de um autor, Fernando Rojas, sobre as interpretações diversas que os leitores fizeram da sua obra: A Celestina (1507). Há também uma releitura de “Dom Quixote”, em que um “amo” se irrita com as leituras de seu servo (Sancho) que são típicas das práticas orais. Para Rojas, existe um motivo para a má compreensão de seu livro: a intervenção desastrosa dos impressores, posto que, os autores não escrevem livros, os livros são manufaturados por escribas, que mudam as obras com ilustrações, eliminações de parágrafos, e resumos de obras.
A análise de Chartier sobre os textos, impressos e leituras têm a finalidade de mostrar a tríplice relação que envolve a produção e difusão do conhecimento: uma relação em que participam os autores dos livros, editores e leitores. Chartier conclui em sua pesquisa, que o conhecimento não se difundiu apenas entre a classe letrada; ele percebeu que os textos de uma classe elitizada podiam ser lidos por pessoas de classes subalternas, a partir dos folhetos de cordel. Chartier coloca em dúvida a dicotomia entre cultura erudita versus cultura popular, afinal, os textos passados à categoria de livro de cordel não eram populares por si mesmos, pertencendo antes a todos os gêneros, épocas e leituras, e além do mais, todos os livros antes de passarem à fase de cordel, passaram antes pelas edições, que nada tinham de populares •. Estas palavras mostram que as pessoas comuns (populares) de classes não elitizadas, também interagiam com as leituras das pessoas “nobres”. Deste modo, deve ser posto em dúvida a cultura letrada no tocante a sua área de atuação: minoritária, reservada! .
Depois de transitar-mos pela obra de Chartier, passemos a lançar olhares (breves) pela pesquisa de uma historiadora francesa, Michelle Perrot. O seu livro “Os Excluídos da História” faz um percurso sobre as pessoas que estavam na categoria que chamamos “história de baixo” (operários, mulheres, prisioneiros), posto que a historiadora em tela, procurou seguir as abordagens de Michel Foucault.
Perrot analisa a sociedade industrial, mostrando todo o processo de ordem e racionalização presentes nas fábricas, prisões e escolas. É um estudo que se volta atentamente para as fábricas e prisões, mostrando como os sujeitos eram comandados pelos conjuntos de vigilância que adestravam as pessoas, principalmente, a partir das concepções panópticas. É claro que o estudo não aponta para a sujeição dos indivíduos: há uma relação conflituosa, marcada por disputas e negociações.


CONCLUSÃO

Como podemos observar, ao longo de todo texto, o trabalho de Foucault mostrou-se inovador e original frente às pesquisas dos anos de 1970. Foucault trouxe novos objetos para a história: de total, a história passou a ser observada pelo lado do geral, sem a preocupação de oferecer explicações totais para a história. É certo que, por um lado, muitos historiadores não seguiram os olhares foucaultianos (outros sim), mas, por outro, não resistiram a trabalhar a partir dos objetos horizontados por Foucault, mesmo que fosse para criticá-lo, rejeitá-lo. Mal sabiam que estavam a fazer o que Foucault mais defendia: sair da normalidade, da igualdade, da uniformidade; colocando em dúvida tudo aquilo que está posto como o “mais correto”; preferindo o que é múltiplo, os agenciamentos móveis, às diferenças. Afinal, “quanto mais queremos conhecer a nós mesmos, tanto mais devemos renunciar a nós mesmos; e quanto mais queremos renunciar a nós mesmos, tanto mais devemos trazer à luz a verdade sobre nós mesmos (aforismo foucaultiano).


BIBLIOGRAFIA

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CONSIDERAÇÕES SOBRE O MARXISMO CIENTÍFICO

CONSIDERAÇÕES SOBRE O MARXISMO CIENTÍFICO
José do Egito Negreiros Pereira

O marxismo, idéias doutrinadas pelo pensador alemão Karl Marx (1818-1883), durante o século XIX, e que teve seu auge ao longo do século XX, por intermédio de seus seguidores (Lenin, Althusser, Eric Hobsbawm, Florestan Fernandes, entre outros), distingui-se das demais filosofias da história por ser um pensamento voltado para a práxis/prática, com a intenção de transformar a realidade. Afinal, Marx filosofava pretendendo mudar o mundo. “Tudo que é sólido se desmancha no ar”, portanto, nada dura para sempre, dizia.
O pensamento de Marx tinha por objetivo levar a humanidade ao comunismo, uma sociedade sem classes. Isto acontecia pelo fato de Marx não aceitar a exploração vertiginosa da ascendente sociedade burguesa e industrial em detrimento do proletariado. Amparado sob o método dialético, difundido naqueles tempos pela filosofia de Hegel, Marx vislumbrava em sua teleologia da história, uma esperança salvacionista para a classe operária: “As estruturas econômicas e sociais mudam”.
Além de filósofo e economista, Marx foi antes de tudo um historiador. Ele pesquisou nossas origens, cujo resultado desse estudo foi o seu “materialismo histórico”. A humanidade é determinada pelas contradições existentes entre os modos de produção, sendo que, tais divergências, provocam a luta de classe; e os fatos econômicos são a causa determinante dos fenômenos históricos e sociais. A História não é a realização da “Idéia”, como pretendia Hegel, e nem tampouco o desenrolar de um plano divino; ela é fruto da ação do homem concreto.
O Marxismo difundiu que durante a antiguidade a Europa presenciou a luta entre amos e escravos; no medievo, senhores feudais contra os servos; e, com a emergência do capitalismo, a luta passou a ser entre burgueses contra os proletários. Portanto, “a luta de classes seria o motor da história”. No entanto, antes de se atingir ao comunismo (uma sociedade sem classes), Marx dizia que era necessário passar-se pelo socialismo, uma espécie de ditadura do proletariado, e para tanto, falava aos trabalhadores por intermédio das “Internacionais”- comícios em que se debatiam o fortalecimento da classe operária. Ele pretendeu organizar os trabalhadores para que a classe operária derrotasse a estrutura capitalista. E, foi por isto que seus comentadores o classificaram como sendo um pensador do socialismo científico para que não fosse confundido com os socialistas utópicos.
Entretanto, por que Marx não foi classificado como um utópico ou romântico? Em primeiro lugar, porque ele construiu uma narrativa da história – um caminhar da humanidade – utilizando-se do método dialético com sua luta de classes; e, em segundo lugar, porque ele organizava os proletários para lutarem por seus objetivos traçados a priori. Quanto aos socialistas utópicos, estes pensavam em transformar o mundo de forma isolada, individual: cada burguês, sensibilizado pelo sofrimento de seus empregados, tenderiam a diminuir a jornada de trabalho, a aumentar os salários, a construir melhores moradias, enfim, buscariam melhorar de qualquer maneira a vida de seus trabalhadores. É interessante observarmos que, do ponto de vista dos utópicos, as mudanças sociais viriam de cima (por intermédio dos ricos), enquanto que para Marx, a revolução que seria social e econômica, deveria começar pela iniciativa operária, portanto, deveria ser uma transformação que começaria de baixo (com os trabalhadores).
Devemos ter o cuidado quando formos classificar a obra de Marx em algum modelo ideológico. E sempre que fizermos alguma classificação, deve-se explicar o porquê de tal escolha, como pretendeu-se aqui, dentro de nossos limites teóricos, em que classificamos o pensamento de Marx como sendo de um Marxismo ou socialismo científico. A unanimidade entre os críticos é que Marx nunca foi interpretado, afinal, os grandes acontecimentos socialistas aconteceram depois de sua morte, e várias foram as deturpações, como as realizadas por Josef Stálin, durante sua ditadura na extinta URSS, atual Rússia.
KARL FRIEDRICH VON MARTIUS E FRANCISCO ADOLFO DE VARNHAGEN: O BRASIL E A INFELIZ PRESENÇA NEGRA

José do Egito N. Pereira
(Me. UFCG)
SESC
www.sescpb.com.br


Todo brasileiro, mesmo alvo, de cabelo louro, traz na alma e no corpo a influência direta ou vaga e remota do africano. (...). Em tudo que é expressão sincera de vida, trazemos quase todos a marca da influência negra.

Gilberto Freyre


A escrita da história brasileira emergiu oficialmente com a fundação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) em 1838. O objetivo deste instituto de pesquisa era o de produzir uma história para a nação imperial brasileira e colocar o Brasil na marcha do progresso e no círculo dos status de nação civilizada. Portanto era preciso conhecer e construir uma história para a jovem nação independente.
Para levar adiante o projeto de uma escrita da história do Brasil, no ano de 1840, a revista do IHGB lançou um concurso de premiação para o melhor plano de escrita da história do Brasil, cuja iniciativa veio do secretário perpétuo do IHGB, o cônego Januário da Cunha Barbosa. O Vencedor do concurso foi o naturalista alemão Karl Friedrich Philipp von Martius. “Como se deve escrever a história do Brasil” (Dissertação vencedora) foi escrita para mostrar aos olhos dos leitores europeus uma parte do mundo ainda mal conhecida. A principal idéia de “Como se deve escrever a história do Brasil” diz respeito à mescla das três raças como modelo para a história do Brasil:
Qualquer que se encarregar de escrever a História do Brasil, paiz que tanto promete, jamais deverá perder de vista quaes os elementos que ahi concorrerão para o desenvolvimento do homem. São porém estes elementos de natureza muito diversa, tendo para a formação do homem convergido de um modo particular tres raças, a saber: a còr de cobre ou americana, a branca ou caucasiana, e enfim a preta ou ethiopica. Do encontro, da mescla, das relações mútuas e mudanças d’essas tres raças, formou-se a actual população cuja história por isso mesmo tem um cunho muito particular .

Karl Friedrich Philipp von Martius, chamado pelos letrados como “o amigo do Brasil”, dispensou em seus discursos uma análise sobre a mescla das relações raciais no Brasil, procurando enfatizar os horizontes de uma democracia racial brasileira comandada pela hegemonia branca, que levaria, por ser uma raça polida, os princípios de civilização às raças americanas e etíopes. Ao tratar da raça africana ou etíope em suas relações com a História do Brasil, Karl von Martius, teceu breves considerações, ao contrário do que havia feito em relação ao indígena. No tocante ao negro africano, ele nos ofereceu poucos dados e propôs algumas poucas questões. Os questionamentos lançados pelo naturalista bávaro concentravam-se praticamente em torno do tráfico de escravos, os seus hábitos e costumes, os defeitos e virtudes próprios da sua raça e suas influências no caráter do português, o elemento colonizador.
Cada uma das particularidades physicas e moraes, que distinguem as diversas raças, offerece a este respeito um motor especial; e tanto maior será sua influencia para o desenvolvimento commum, quanto maior fôr a energia, número e dignidade da sociedade de cada uma d’essas raças. D’isso necessariamente se segue o portuguez, que, como descobridor, conquistador e Senhor, poderosamente influiu n’aquelle desenvolvimento; o portuguez, que deu as condições e garantias morais e físicas para um reino independente; que o português se apresenta como o mais poderoso e essencial motor
O português emergiu na escrita de Martius como o “poderoso e essencial motor” da obra colonial no Brasil. Isto é verificado, inclusive, pela forma da escrita ortográfica de Martius, que descreve o “senhor” português, com um S (de senhor) maiúsculo. O sangue da “raça branca ou caucasiana” influiu de maneira magistral no desenvolvimento da futura nação brasileira . Era o português quem dava as condições e garantias morais e físicas para um reino independente que foi se formando caudalosamente ao longo de três séculos. Sob o domínio dessa “raça caucasiana”, segundo Martius, as raças “etiópicas” e “indígenas” reagiram positivamente na obra colonial instaurada nos trópicos. Para mostrar o papel civilizador do homem branco no encontro com as outras duas raças, o autor evocou a imagem do português como um rio caudaloso que iria absorver todos os outros confluentes (afluentes) menores, os índios e os negros.
A mescla das raças representaria para Martius uma obra divina: a Providência teria reservado este destino histórico ao Brasil. A realização deste destino, que deveria incluir para a letra a parte não civilizada – os índios e os negros – é considerada como elemento do amálgama brasileiro, estava assim para ser executada .
O debate em torno da mesclagem de raças constituiu num dos principais desafios para os pesquisadores do IHGB. Esta operação no sentido de incluir a parte não civilizada, as raças índia e etiópica seria realizada a partir de uma atividade na qual Martius havia se aventurado durante sua viagem pelo Brasil: o estudo etnográfico. Os trabalhos etnográficos objetivavam conhecer os povos que careciam de história, além de especular sobre a natureza do homem. No ponto de vista do botânico Martius, parecia ser através desta atividade que se poderia realizar a tarefa tão almejada e cuidadosamente pensada pelos letrados do IHGB, a de estabelecer a inserção do negro e principalmente do índio em uma escrita da história do Brasil. “A investigação etnográfica assim tornava-se parte do projeto de ampliação do círculo civilizatório que faria recuar a barbárie” .
O que se verificou nos trabalhos de Martius, em relação à preocupação etnográfica sobre os negros foi algo praticamente nulo: os trabalhos etnográficos do botânico alemão dizem respeito unicamente aos índios, já que sua abordagem sobre os negros no plano da história do Brasil repercutiu em um silêncio para os letrados do IHGB. Entretanto, Martius deixou - em pleno século XIX - uma intrigante pergunta para as gerações futuras de pesquisadores que se dispusesse a escrever sobre o negro brasileiro. A questão chave sobre este elemento formador da nacionalidade brasileira, para este viajante bávaro, era se o Brasil teria tido um desenvolvimento diferente sem a introdução dos negros escravos? Esta era a pergunta que deveria reger o ofício do historiador preocupado em escrever a história do Brasil. Esta questão iria atormentar gerações de historiadores e outros pensadores ao longo da história da escrita da História do Brasil. Contudo, Martius não se mostrou indeciso a esta questão e expôs o que pensara:
Não há duvida que o Brazil teria tido um desenvolvimento muito differente sem a introducção dos escravos negros. Se para melhor ou para peior, este problema se resolverá para o historiador, depois de ter tido occasião de ponderar todas as influencias, que tiveram os escravos africanos no desenvolvimento civil, moral e político da presente população. Mas, no atual estado das coisas, mister é indagar a condição dos negros importados, seus costumes, suas opiniões civis, seus conhecimentos naturais, preconceitos e superstições, os defeitos e virtudes próprias à sua raça em geral, etc., se demonstrar quisermos como tudo reagiu sobre o Brasil .

O historiador que desenvolverá o projeto de escrever uma história para o Brasil, de acordo com a perspectiva proposta por Martius, será o “visconde de Porto Seguro”, natural de Sorocaba, Francisco Adolfo de Varnhagen (1816-1878), historiador considerado (por sua pesquisa metódica) o Heródoto brasileiro, apesar de existir outros estudos antes de sua “História Geral do Brasil” (1850), como os de Pero de Magalhães Gândavo, frei Vicente de Salvador, Sebastião da Rocha Pita, e Robert Southey, que escreveram respectivamente, “história da província de Santa Cruz” (1576), “história do Brasil” (1627), “história da América Portuguesa” (1730) e “história do Brasil” (1810) .
Francisco Adolfo de Varnhagen, o historiador “protegido” da corte de D. Pedro II, também apresenta uma escrita historiográfica voltada para o colonizador português. Sua pesquisa será voltada para o terreno do conquistador europeu que deve impor a sua superioridade étnica, cultural e religiosa. Afinal:
Se o português venceu militarmente os seus adversários, se conquistou seus territórios e os escravizou e exterminou, é porque é superior. (...). A vitória confirma uma superioridade presumida. E, se na luta colonial os brancos venceram, a jovem nação quer ser também vencedora e se identificar étnica, social e culturalmente com o branco. (...). Os brancos são portadores de tudo aquilo de que uma nação precisa para se constituir soberanamente. Aos vencidos resta a exclusão, a escravidão, a repressão e a assimilação pela miscigenação, isto é, pelo branqueamento racial e cultural.
Em História geral do Brasil, Varnhagen dedicou aos negros poucas páginas, assim como von Martius em sua monografia. Para o Visconde de Porto Seguro, os traficantes negreiros fizeram um mal ao Brasil entulhando as suas cidades do litoral e engenhos de negrarias. Na sua leitura, como a colonização africana teve uma grande entrada no Brasil, podendo ser considerada um dos elementos da sua população, “julgamos do nosso dever consagrar algumas linhas neste lugar a tratar da origem desta gente, a cujo vigoroso braço deve o Brasil principalmente os trabalhos do fabrico do açúcar, e modernamente os da cultura do café”. Entretanto, rogou o autor aos céus:
Fazemos votos para que chegue um dia em que as cores de tal modo se combinem que venha desaparecer totalmente no nosso povo os característicos da origem africana, e, por conseguinte a acusação da procedência de uma geração, cujos troncos no Brasil vieram conduzidos em ferros do continente fronteiro, e sofreram os grilhões da escravidão, embora talvez com mais suavidade do que nenhum outro país da América, começando pelos Estado Unidos do Norte, onde o anátema acompanha não só a condição e a cor como a todas as suas gradações .
Varnhagen não era a favor da democracia racial, como almejou o seu contemporâneo Karl Von Martius – que elaborou as bases para se escrever uma história para o Brasil. Aliás, o negro sempre foi menosprezado na escrita de Varnhagen. “Se este não aceitava a escravidão, era, sobretudo porque ela implicava a presença negra no Brasil, em desprestigio para a raça brasileira, que ele desejava que fosse branca pura” .
Para Varnhagen, ao passar tais “gentes” ao Brasil, como escravizados, na verdade estes melhoraram de sorte. Embora a escravidão fosse injusta, por não ser filantrópica, e fosse uma ofensa à humanidade, por ser um ataque ao indivíduo, à família e ao Estado de onde foram arrancados, os negros, ressaltou o autor, melhoraram de sorte ao entrar em contato com gente mais polida, com a bandeira da civilização e a cruz do cristianismo. Por esse motivo, os negros da América eram melhores do que os africanos. Dessa forma, a raça africana tem na América produzido mais homens prestimosos e até notáveis, do que no Continente donde é oriunda. Eles se destacaram pela força física, o gênio alegre para suportar a sua sina, pela capacidade de trabalho .
Quanto à origem dos cativos trazidos para o Brasil, o autor avisou que havia poucos dados para montar um catálogo extenso das diferentes nações de “raça preta”, que os colonos preferiram nesta ou naquela época, e para esta ou aquela região. Mesmo assim, podia-se afirmar que:
(...) a importação dos colonos pretos para o Brasil, feita pelos traficantes, teve lugar de todas as nações não só do litoral da África que decorre desde o Cabo Verde para o sul, e ainda além do Cabo da boa Esperança, nos territórios e costas de Moçambique; como também não menos de outras dos sertões que com elas estavam em guerra, e às quais faziam muitos prisioneiros, sem os matarem. Os mais conhecidos do Brasil eram provindos de Guiné (em cujo número só compreendiam berberes, jalofos, felupos, mandingas), do Congo, de Moçambique, e da costa da Mina, donde eram o maior número dos que entravam na Bahia, que ficava fronteira e com mui fácil navegação; motivo porque nesta cidade tantos escravos aprendiam menos o português, entendendo-se uns com outros em nagô .
Nessas nações, segundo Varnhagen, a idéia de liberdade individual não estava assegurada, uma vez que os mais fortes vendiam os mais fracos, os pais vendiam os filhos e os vencedores os inimigos submetidos e, por esta razão, a escravidão no Brasil tornou-se um alento para os africanos.
Sobre as práticas religiosas dos “povos negros”, Varnhagen comentou que havia em alguns ideais de islamismo, e até já de cristianismo, em virtude da vizinhança dos estabelecimentos e feitorias dos europeus. Todavia, a maioria não passava de “gentios ou idólatras” porque “andavam nus, lavavam-se amiúdo, e, muito deles, golpeavam a cara por distintivo de nação”. Eles adoravam ídolos, outros animais, depositavam sua fé em calundus, quigilas e feitiços, realizavam sacrifícios e oferendas aos que possuíam muito “charlatanismo para se inculcarem por seus sacerdotes” . Tais costumes horrorizavam Varnhagen, criado dentro dos preceitos da civilização e da fé cristã.
Em relação à pergunta lançada por von Martius sobre “se o Brasil teria tido um desenvolvimento diferente, ou seja, melhor, sem a introdução dos negros escravos”,
Varnhagen respondeu enfaticamente de forma positiva. O desenvolvimento do Brasil teria sido outro sem a presença dessa “gente”. A colonização africana da colônia constituiu um erro, em sua opinião. No país, havia perpetuado um regime de trabalho servil que ele nem conseguia qualificar, mas de que não se podia abrir mão, sem causar grandes males para a nação. Para o autor, o índio deveria ter sido usado como mão-de-obra nas lavouras e engenhos. Neste aspecto, História geral do Brasil teceu críticas e ataques aos jesuítas e defendeu a ação dos bandeirantes.
Portanto, podemos perceber que Varnhagen não considerava que a presença da raça negra tivesse sido boa, favorável à colonização portuguesa no Brasil. Talvez, segundo o autor, esta poderia ter sido evitada, ou com o abandono da cultura do açúcar, ou então com o trabalho de brancos e índios entre cinco e nove horas da manhã e das quatro às seis horas da tarde, descansando ou empregando em casa as horas mais quentes do dia, como faziam os índios antes do desembarque dos europeus. Um projeto colonial (e nacional) sem negros seria o ideal para o autor de História geral do Brasil .
Varnhagen acusou a falsa filantropia dos missionários da Companhia de Jesus de impedir a escravidão vermelha. Os bandeirantes paulistas, em sua opinião, que caçavam os “gentios” pelo sertão foram menos nocivos ao Brasil do que os traficantes de escravos negros e os jesuítas. Contudo, nas palavras do padre Antônio Vieira, o negro devia se sentir conformado por ter sido escolhido para realizar os trabalhos forçados e sofrer nos trabalhos da cana-de-açúcar, posto que, aquela se apresentava como uma missão semelhante à de Cristo. O padre Vieira viu no negro o Cristo da civilização; “Não ha trabalho nem genero de vida no mundo mais parecido a Cruz e à Paixão de Christo que o vosso em um desses engenhos”
O Padre Antônio Vieira, aconselhava os negros, em seus sermões, o qual ilusória era a escravidão que os oprimia no mundo, se orassem conformados ao pai de todas as criaturas. Aconselhava aos negros que sofressem como os hebreus desterrados na Babilônia, e assim, seriam à semelhança daqueles, contemplados por Deus no Paraíso; que imitassem ao cristo crucificado, sacrificando-se na terra pela humanidade, sujeitando-se sem rancor aos castigos senhoriais para assim, obter a salvação eterna: verdadeira liberdade .
Esta era a explicação jesuítica para justificar a escravidão do negro no Brasil: uma explicação religiosa que protegia os índios da escravidão, e que, por outro lado, garantia o livre comércio dos escravos negros, causando no futuro a insatisfação de Varnhagen, que considerava uma lástima a presença da raça negra na jovem nação. Segundo Varnhagen: “A filantropia jesuítica em relação ao indígena era mais palavra do que exemplo – eles próprios usavam o índio como escravo. Sua proteção ao indígena deixou a colônia à míngua de braços, o que forçou a importação de africanos” . Varnhagen era contrário à escravidão, pois, o trabalho escravo não causava no homem escravizado o amor à pátria, e, mesmo que a escravidão fosse indispensável, que ela tivesse sido estruturada sobre o elemento indígena. Afinal:
Para ele, a colonização portuguesa teria sido mais bem-sucedida se não tivesse tido que contar com a presença negra. Varnhagen lamenta o que a escravidão representou em termos raciais: a presença africana no Brasil. O latifúndio e a escravidão seriam mais toleráveis se o escravo fosse o índio, que a pseudofilantropia jesuítica impediu. O que ele não aprecia é a negraria que enche as cidades e engenhos brasileiros .
Mas, por que Varnhagen pensava desta forma? Varnhagen foi um intelectual do século XIX, o século da Ciência, do Positivismo, do Evolucionismo, das teorias do Darwinismo Social e da Miscigenação. A emergência do mencionado século influenciou (moldou) as condições e possibilidades discursivas do pensar de Varnhagen. Se ele não concordava com a presença negra no Brasil, as teorias evolucionistas e de miscigenação lhes dava a possibilidade de almejar para o futuro da jovem nação, um país totalmente branco. A situação era paradoxal: a presença negra era indesejável, mas, embora alguns intelectuais discordassem, era necessário extinguir tal presença pela miscigenação.
Neste contexto, da virada do século XIX para o século XX, teorias afirmarão a hegemonia branca por intermédio de discursos “científicos”: uns falarão a favor da miscigenação, outros serão contrários; projetos sócio-culturais se encarregarão com o transcorrer dos idos do século XX, em discutir a democracia racial, tudo por uma causa: externar a identidade do Brasil, valorizando suas cores e sua cultura.


BIBLIOGRAFIA

CARDOSO, Ciro Flamarion. Escravidão e Abolição no Brasil (org): novas perspectivas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988.

FREYRE, Gilberto. Nordeste. Aspectos da influência da cana sobre a vida e a paisagem do nordeste do Brasil. São Paulo: Global, 2004.

MARTIUS, Karl von. Como se deve escrever a história do Brasil. Revista trimestral de História e Geographia, ou jornal do instituto histórico e geográphico brazileiro. Nº 24. Janeiro de 1845.

MATTOS, Ilmar Rohloff (org.). Histórias do ensino de história do Brasil. Rio de Janeiro: Access, 1998.

REIS, José Carlos. As Identidades do Brasil: de Varnhagen a FHC. Rio de Janeiro: FGV, 2002.

RIBEIRO, Renilson Rosa. Colônia (s) de Identidades: discurso sobre raça nos manuais escolares de história do Brasil. Campinas, SP: [s. n. ], IFCH, UNICAMP, 2004.

VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. História Geral do Brasil: antes da sua separação e independência de Portugal. São Paulo: Melhoramentos, Tomo Primeiro, 1975.

sábado, 4 de setembro de 2010

A ERA VARGAS (1930-1934) - RESUMO

A ERA VARGAS (1930-1945)
GOVERNO PROVISÓRIO (1930-1934)
GOVERNO CONSTITUCIONAL (1934-1937)
O ESTADO NOVO (1937-1945)

Sendo reforçado por um amplo conjunto de forças, o primeiro mandato de Getúlio Vargas como presidente teve a presença de vários grupos aliados. Classes médias, a burguesia urbana, as oligarquias dissidentes, banqueiros, industriais e militares formavam outra configuração política. Nesse quadro, as antigas oligarquias não tinham seu poder completamente expurgado, mas agora teriam que dividi-lo junto ao interesse desses novos nichos.
Vargas compôs um ministério repleto de representantes políticos gaúchos e mineiros. Além disso, colocou diversos militares para controlarem os governos estaduais na qualidade de interventores. 
OS MILITARES: extrema esquerda (comunismo) e direita (totalitarismo).
ECONOMIA: VARGAS INVESTIU NA INDUSTRIA DO PAÍS, CRIANDO OS MINISTÉRIOS (INDÚSTRIA E COMÉRCIOS, DO TRABALHO, EDUCAÇÃO E SAÚDE); VALORIZAÇÃO DO CAFÉ (PVC), INSTITUTO DO CACAU.
LEIS TRABALHISTAS: CLT: jornada de oito horas diárias; a paridade salarial entre os sexos, a proibição do trabalho aos menores de 14 anos; férias remuneradas e indenização para demissão sem justa causa.

A REVOLUÇÃO CONSTITUCIONALISTA


Enquanto o novo presidente reafirmava suas alianças colocando os tenentes à frente dos governos estaduais, a insatisfação política dos paulistas ganhava maior força. Nesse aspecto, membros da oligarquia buscavam apoio político para pressionar o novo presidente a convocar uma nova constituinte. A realização de novas eleições seria uma maneira de rearticular a presença das oligarquias no poder e garantir os interesses desse mesmo grupo.
Em maio de 1932, uma manifestação paulista acabou gerando graves conseqüências com a morte de quatro jovens manifestantes: Martins, Miragaia, Dráusio e Camargo.

A CONSTITUIÇÃO DE 1934


A CONSTITUINTE (1933): Seguindo os elementos do novo Código Eleitoral, foram organizadas, em 1933, as eleições que escolheriam os políticos responsáveis pela discussão de nossa nova carta magna. De tendência modernizadora, a eleição da Assembleia Constituinte foi conduzida pelo voto secreto dos maiores de 21 anos alfabetizados, incluindo as mulheres.
O Brasil continuava a ser uma República Federativa, com relativa autonomia para os estados; os poderes continuavam separados em Executivos, Legislativo e Judiciário; e as eleições diretas eram mantidas como forma de escolha dos governadores, deputados e do presidente.
Com relação às leis trabalhistas, a constituição proibiu a distinção dos salários para uma mesma função por razões de estado civil, nacionalidade, sexo e idade. Promoveu a criação do salário mínimo e a padronização de uma jornada de trabalho máxima de oito horas diárias. O repouso semanal remunerado foi instituído, assim como as férias anuais remuneradas. Os menores de quatorze anos de idade eram proibidos de trabalhar e os patrões deveriam indenizar o trabalhador que fosse demitido sem justa causa.
TEMAS: SAÚDE, EDUCAÇÃO E TRABALHO- INOVAÇÕES

A CRISE DA REPÚBLICA VELHA

A política do café-com-leite foi um acordo firmado entre as oligarquias estaduais e o governo federal durante a República Velha para que os presidentes da República fossem escolhidos entre os políticos de São Paulo e Minas Gerais. Portanto, ora o presidente seria paulista, ora mineiro.
O nome desse acordo era uma alusão à economia de São Paulo e Minas, grandes produtores, respectivamente, de café e leite.
Formalmente, a política do café-com-leite teve início em 1898, no governo do paulista Manuel Ferraz de Campos Salles, e encerrou-se em 1930, com a chegada de Getúlio Vargas ao poder

AS ELEIÇÕES

VOTO ABERTO: AOS MAIORES DE 21 ANOS;
VOTO DO CABRESTO;
PRESENÇA DO CORONEL;
FEDERALISMO: AUTONOMIA PARA OS ESTADOS

A CRISE

A crise da República Velha e o Golpe de 1930 Em 1930 ocorreriam eleições para presidência e, de acordo com a política do café-com-leite, era a vez de assumir um político mineiro do PRM. Porém, o Partido Republicano Paulista do presidente Washington Luís indicou um político paulista, Julio Prestes, a sucessão, rompendo com o café-com-leite. Descontente, o PRM junta-se com políticos da Paraíba e do Rio Grande do Sul (forma-se a Aliança Liberal ) para lançar a presidência o gaúcho Getúlio Vargas.  Júlio Prestes sai vencedor nas eleições de abril de 1930, deixando descontes os políticos da Aliança Liberal, que alegam fraudes eleitorais. Liderados por Getúlio Vargas, políticos da Aliança Liberal e militares descontentes, provocam a Revolução de 1930. É o fim da República Velha e início da Era Vargas.

A GUERRA DE PRINCESA (O CORONEL ZÉ PEREIRA VERSUS JOÃO PESSOA)

Poucos episódios revelam tão bem o delicado equilíbrio existente na República Velha entre o poder dos "coronéis", que mandavam nos municípios do interior, e a autoridade dos governadores como a revolta da Princesa, ocorrida no sertão da Paraíba no ano de 1930.

A MORTE DE JOÃO PESSOA


No dia 26 de julho de 1930, João Pessoa foi assassinado por João Dantas na Confeitaria Glória, na cidade de Recife (PE). Segundo historiadores, por questões de ordem pessoal e também por questões políticas, sua morte foi o estopim para um movimento armado que mudou a estrutura política nacional, gerando o episódio que ficou conhecido como Revolução de 30. Com o assassinato de João Pessoa iniciou-se um movimento armado no país contra a posse do presidente eleito, que terminou com a deposição em 24 de outubro de 1930, do presidente Washington Luís e a subida ao poder de Getúlio Vargas. Terminava assim a República Velha e iniciava-se a chamada Era Vargas.

O principal motivo que teria levado o advogado João Dantas a assassinar João Pessoa seria a publicação pelo jornal A União (jornal oficial do Estado) de correspondências e escritos (como poemas) trocados entre o advogado e a sua amante, a professora e poetisa Anayde Beiríz, além da exposição de fotografias íntimas do casal na delegacia de polícia, que escandalizaram a sociedade moralista da época.  Tanto as cartas e escritos quanto as fotografias foram confiscados pela polícia no escritório de João Dantas, na rua Duque de Caxias.
Desesperado com o ocorrido, ele foi até a cidade de Recife onde assassinou com arma de fogo o então governador do estado, que seria o candidato a vice-presidente da República na chapa de Getúlio Vargas. Depois do crime, João Dantas foi preso e encontrado morto na cadeia.

segunda-feira, 19 de abril de 2010

GILBERTO FREYRE VERSUS O REVISIONISMO DE FLORESTAN FERNANDES: A DOCILIDADE E O RACISMO NAS RELAÇÕES SOCIAIS BRASILEIRA

Por: José do Egito N. Pereira.

Introdução
O presente trabalho foi construído durante a escrita de nossa dissertação de mestrado, intitulada “A Escola Moderna e a Des/Construção do Negro: por novos olhares históricos”, quando tivemos a oportunidade de se debruçarmos sobre os textos de Gilberto Freyre e do Grupo de pesquisadores da USP, coordenados sob a orientação do professor Florestan Fernandes. Durante a pesquisa, ficaram claras as disparidades nas maneiras de ver e dizer sobre o negro brasileiro. Gilberto Freyre desenvolveu um discurso em que predominava a positividade da presença negra na formação social brasileira, além da suavidade nas relações sociais entre o elemento branco com o negro, na Casa Grande & Senzala. A obra freyreana é voltada para a formação social brasileira. Nela, Freyre procurou transformar a negatividade vista na miscigenação, corporificada no mulato, em algo positivo. Sua “Casa Grande & Senzala” rompeu com os preconceitos anteriores ao assumir nossa mulatidade como algo benevolente.
Já o Grupo de Florestan Fernandes, apontou como idílicas tais conclusões freyreana, posto que, em vez de democracia racial, encontraram no Brasil, indícios de descriminação, e, em vez de harmonia, perceberam o preconceito na história da “democracia racial brasileira”. Eles concluíram, também, a existência particular de um racismo no Brasil: um preconceito de não ter preconceito; este preconceito se revela na forma do particular, do íntimo, do privado, porque publicamente ele é silenciado. As conclusões de Florestan Fernandes afirmam que ninguém nega que exista racismo no Brasil, mas sua prática é sempre atribuída a outros. Além disso, o problema parece ser o de afirmar oficialmente o preconceito, e não o de reconhecê-lo na intimidade. Para esse Sociólogo, a escravidão suave é um mito cruel a ser destruído falar em suavidade e ternura nas relações senhor/escravo é ir cinicamente contra os fatos. Entretanto, devemos compreender que a história é filha do seu tempo, e que tais divergências teóricas sintetizam a escrita da história sendo elaborada a partir de diferentes lugares sociais (Michel de Certeau), ou a partir de diferentes enunciados e discursos (Michel Foucault).

1. O pensamento de Freyre sobre as relações entre o branco e o negro: a docilidade social na Casa Grande & Senzala

A produção historiográfica vinculada ao IHGB desprezava a participação do negro enquanto agente social na sociedade brasileira. Para esses pesquisadores da identidade brasileira, o negro representava a parte não civilizada da emergente nação. Mas, na primeira metade do século XX emergiu no Brasil um leque de discursos (culturais e político) que procurou demonstrar a nossa docilidade social, fruto da mescla de nossas três raças que culminou na sociedade brasileira. Freyre adere a esta rede discursiva e vai discorrer sobre a suavidade em nossas relações sociais a partir do seu próprio e saudoso mundo: o mundo da casa-grande e senzala, dos sobrados e mucambos.
A obra freyreana é voltada para a formação social brasileira. Nela, Freyre procurou transformar a negatividade vista na miscigenação, corporificada no mulato, em algo positivo. Sua “Casa Grande & Senzala” rompeu com os preconceitos anteriores ao assumir nossa mulatidade como algo benevolente. Freyre diluiu os conflitos rácio-sociais num adocicado e idílico paraíso onde senhores e escravos viviam na mais cordial convivência possibilitada pelo cruzamento entre a malevolência e sensualidade da mulher africana e indígena com uma suposta e inata cordialidade e ausência de racismo do homem português.
Apresentações à parte, vejam o que Freyre escreveu sobre o papel do negro na sociedade escravista. Em “Casa Grande & Senzala”, ele defendeu a miscigenação como algo positivo, e em momento algum escondeu a presença negra como uma das raças fundadoras do povo brasileiro.
Todo brasileiro, mesmo alvo, de cabelo louro, traz na alma, quando não na alma e no corpo... a influência direta ou vaga e remota, do africano ... Em tudo que é expressão sincera de vida, trazemos quase todos a marca da influencia negra .
Freyre explica como a presença e a influência negra pode ser sentida na vida do homem branco, e ao mesmo tempo, lança as bases de sua democracia racial, ao relatar que os homens brancos de sua geração se lembram da escrava ou sinhama que os embalou, que os amamentou e que os deu de comer. Freyre escreve com nostalgia sobre: a negra velha que nos contou as primeiras histórias de bicho e de mal assombrado. Da mulata que nos tirou o primeiro bicho de pé de uma coceira tão boa. Da que nos iniciou no amor físico e nos transmitiu, ao ranger da cama-de-vento, a primeira sensação de homem .
Casa Grande & Senzala nos hipnotiza com o seu denso e adocicado enredo, enredo que às vezes se confunde com um livro de literatura, tamanho o mundo idílico retratado por Freyre. Para ele, apontando uma outra influência do negro, no que diz respeito à culinária, “pode-se afirmar que na formação do brasileiro – considerada sob o ponto de vista da nutrição – a influência mais salutar tem sido a do africano” . Tenhamos de reconhecer nesta passagem o pioneirismo de Gilberto Freyre: Qual historiador, em plenos anos 30, estaria comprometido com uma pesquisa que priorizasse abordagens como a culinária brasileira, como o vestuário e a sexualidade?
Freyre não se limitou, nesse livro, a repetir o que a maioria dos historiadores descreveu sobre o negro africano: que eles pertenciam a dois grandes troncos culturais – os bantus e os sudaneses. Aliás, essa é uma máxima dos livros didáticos de história. Quanto aos negros que vieram para o Brasil, Freyre mostrou que não se tratava de povos selvagens da tribo dos homens nus.
O Brasil não se limitou a recolher da África a lama da gente que lhe fundou os canaviais e os cafezais; que lhe amaciou a terra seca. Vieram-lhe da África “donas de casa”, para seus colonos sem mulher branca, técnicos para as minas; artífices em ferro; negros entendidos na criação de gado e na industria pastoril; comerciantes de pano e sabão; mestres, sacerdotes e tiradores de reza maometanos .
Até estas últimas linhas, procuramos apontar as considerações não polêmicas da obra de Gilberto Freyre. Afinal, Casa Grande & Senzala é também conhecida como uma obra conservadora, a serviço da antiga aristocracia.
Freyre comenta que a colonização brasileira só foi possível porque lhe trouxeram o braço forte do escravo africano, capaz de esforço agrícola. Para Freyre os indígenas não serviram à escravidão, por se mostrarem molengas e inconstantes. Ele explica a vida social das populações indígenas: povos calados, sonsos e tristonhos; povos coletores e caçadores. O negro, segundo Freyre foi o escolhido para o trabalho escravo porque Portugal já tinha feito na África (ao longo do século XV), experiências com o trabalho agrícola utilizando-se da mão-de-obra africana. Na obra Nordeste (2004), Freyre nos informa as características dos negros escolhidos para o trabalho pesado da lavoura, sendo estes, cambindas e benguelas, congos e angolanos, os mais vigorosos para agricultura.
Freyre justifica a escolha de certos grupos de negros para o trabalho escravo, exemplificando os seus biótipos físicos. Isso gerou muitas críticas, afinal, os negros não aceitavam a condição de cativo, e, também, se mostraram inconstantes nos trabalhos da lavoura. Freyre mesmo, chega a escrever que as tradições regionais taxavam de incompetentes os negros que se deixavam torar facilmente pelas moendas . Isto não seria um ato de contestação ao trabalho na lavoura? O que estava às vistas, nestas passagens da obra Nordeste, é que o negro também não estava apto ao trabalho da lavoura, pois, assim como o índio, o negro também não aceitou a escravidão. O próprio Freyre corrobora esta afirmação:
O que se deve salientar é o seguinte: que uma coisa é o homem dentro do seu próprio sistema de cultura e outra coisa é ele desenraizado desse sistema e sujeito pela conquista militar ou pelo regime de trabalho escravo a um gênero de vida artificial, estranhos aos seus desejos, aspirações e interesses mais íntimos .
A polêmica Freyreana começa a expressar-se, quando este fala das relações afetivas entre o senhor de engenho e o escravo negro. Na Casa Grande “É verdade que desde esses tempos remotos o “Senhor” se adoçou em ‘sinhô’, em ‘nhonhô’, e, ‘ioiô’, do mesmo modo que ‘negro’ adquiriu na boca dos brancos um sentido de íntima e especial ternura: meu ‘nêgo’ minha ‘nêga’...” .
Outra polêmica que envolve o universo freyreano revela-se na sexualidade, ou seja, nas relações entre os senhores brancos com os negros escravizados. Na opinião de Freyre (2003) uma espécie de sadismo do branco e de masoquismo do índio ou do negro teria predominado nas relações sexuais como nas sociais do europeu com as mulheres das raças submetidas. Que o homem branco da época colonial fosse um sádico, isto é, sentisse prazer em fazer e ver o negro sofrer, até que não há controvérsias, mas as antíteses surgem quando das indagações sobre o “lado masoquista” do negro escravizado: o negro gostava de apanhar, ser agredido ou espancado?
Nas relações sexuais entre os senhores e os negros, Freyre aponta os escravos como pessoas passivas, submetidas “ao desejo sem limites do senhor e nesta submissão encontraria um inconfessado prazer” . Será que nunca houve estupros na Casa Grande e Senzala? Freyre ignorou as tensões e resistências em sua obra. A conclusão de Freyre é que “a relação senhor/escravo é uma relação sadomasoquista, isto é, uma relação de prazer sexual e até afetuosa, com violência”.
Contudo, a Casa Grande & Senzala de Gilberto Freyre, não simbolizou apenas o lugar de benevolência e afetividade entre senhores e escravos. O escravo também se mostrou ativo no “mundo freyreano”, quando sua Casa Grande apresenta ao leitor todo seu lado sombrio: “Mas não foi toda de alegria a vida dos negros escravos... Houve os que se suicidaram comendo terra, enforcando-se, envenenando-se com ervas e potagens dos mandingueiros. O banzo deu cabo de muitos. O banzo – saudade da África” . Freyre enumera os mais diversos recursos utilizados pelos negros como um sinal de repúdio ao sistema da escravidão, o que demonstra um paradoxo na escrita do sociólogo pernambucano que viu harmonia e afetuosidade nas relações raciais do Nordeste de Casa Grande & Senzala. A obra Nordeste, nos dá outros exemplos da renúncia do negro aos trabalhos forçados:
O fato de tanto preto (...) ter se suicidado de raiva, de dor, de saudade, foi apenas o aspecto mais trágico do fenômeno de desenraizamento. Mãos, pés e órgãos genitais que não suportaram a separação do resto do corpo – que era a tribo, com sua religião, os seus ritos, as suas danças. A dor do desenraizamento se exprimiu também numa série de atitudes menos drásticas. Na falta de interesse pela vida. No banzo. Na lombeira. Na preguiça. Na libertinagem. Na masturbação entre os moleques mais tristonhos. Na inclinação ao masoquismo, entre os mais doces aos senhores e aos sinhozinhos brancos .

2. A crítica do grupo intelectual de Florestan Fernandes: as pesquisas da desigualdade social brasileira

As décadas seguintes à publicação de Casa Grande & Senzala serão (entre os anos 40 e 50) de uma nova geração de intelectuais, integrada por Florestan Fernandes, Otávio Yanni, Emília Viotti da Costa, Fernando Henrique Cardoso e outros. Os ideais marxistas permearam a escrita dos pesquisadores da USP: emergiram discursos combatentes ao sistema capitalista e em prol da independência econômica do Brasil; no tocante ao social, as possibilidades do discurso foram em torno das contradições de classes e das injustiças sociais. O interesse pelas conseqüências da escravidão e suas relações com o sistema capitalista esteve presente nas obras destes estudiosos. Para eles, a escravidão é pedra basilar no processo de acumulação do capital, instituída para sustentar dois grandes ícones do capitalismo comercial: o mercado e o lucro. Ao criticarem “Casa Grande & Senzala” esses autores afirmam que em Freyre, as relações de dominação no Brasil são ocultadas, quando foram violentas e cruéis. É visível na obra freyreana a tentativa de mostrar o homem branco, tratando seu escravo com bondade, suavidade e ternura. Por isso, considera-se que “Freyre apagaria as tensões, as agudas contradições reais que caracterizaram as relações sociais entre senhores e escravos” .
Neste sentido, “particularmente reveladoras são as análises de Florestan Fernandes, que aborda a temática racial tendo como fundamento o ângulo da desigualdade” . Para esse Sociólogo, um dos maiores críticos da escrita de Gilberto Freyre, “A escravidão suave é um mito cruel a ser destruído (...) falar em suavidade e ternura nas relações senhor/escravo é ir cinicamente contra os fatos” . Os divergentes de Freyre afirmavam que: a organização e regularidade da produção para exportação em larga escala – de que dependia a lucratividade – impunham a compulsão ao trabalho; para obtê-lo, coerção e repressão seriam as principais formas de controle social do escravo . Segundo Florestan Fernandes:
Havia todo um vasto edifício, compreendendo a colônia e a Metrópole apoiado no trabalho escravo. Poderosos interesses e diversos grupos sociais organizavam-se no ‘regime do governo colonial’. Aí se desfaz o mito da cordialidade, doçura, das relações entre senhor e escravo. Em síntese, a superposição de estamentos de uma ‘raça’ dominante e de castas de raças dominadas punha a ordem societária correspondentes sobre um vulcão. A força bruta, em sua expressão mais selvagem, coexistia com a violência organizada institucionalmente e legitimada pelo caráter sagrado das tradições, da moral católica, do código legal e da razão de Estado. O mítico paraíso patriarcal escondia, pois, um mundo sombrio, no qual todos eram oprimidos, embora muito poucos tivessem acesso, de uma maneira ou de outra, à condição de opressores. Nessa sociedade se definia a figura legal do escravo, simultaneamente, como um inimigo doméstico e um inimigo público .
Sobre o mito da democracia racial, defendida por Freyre, Florestan Fernandes observou que, em vez de democracia surgiram, no Brasil, indícios de discriminação, em lugar de harmonia o preconceito. Ele concluiu em suas pesquisas a existência particular de um racismo no Brasil: um preconceito de não ter preconceito; este preconceito se revela na forma do particular, do íntimo, do privado, porque publicamente ele é silenciado. As conclusões de Florestan Fernandes afirmam que ninguém nega que exista racismo no Brasil, mas sua prática é sempre atribuída a outros. Além disso, o problema parece ser o de afirmar oficialmente o preconceito, e não o de reconhecê-lo na intimidade.
As pesquisas de Florestan Fernandes se constituíram como análises importantíssimas para os anos 50 e gerações posteriores. Fernandes discutiu sobre a escravidão, mas, muito mais que isto, ele procurou debater a questão negra no país, isto é, ele convidou a nação para discutir o seu presente: o racismo contra o negro: negro, uma invenção do branco.
As relações, processos e estruturas sociais que constituíam a ordem social escravocrata estavam amplamente permeadas pelas mais diversas formas de discriminação e operavam no sentido de manter a posição e a relação recíprocas existentes entre as ‘raças’ a que pertenciam os senhores e as ‘raças’ em que se recrutavam os escravos. Neste contexto, negro e escravo confundem-se. Na linguagem cotidiana, principalmente nas das pessoas que pertenciam à camada senhorial, elas eram noções sinônimas e intercambiáveis. Está em marcha o fetichismo da cor. Negro equivalia a indivíduo privado de autonomia e liberdade; escravo correspondia (em particular do século 18 em diante), a indivíduo de cor .

Com o fim do período escravista o termo negro substituirá ao termo escravo no plano social e econômico. Após as pesquisas que realizou nos anos 50, Florestan Fernandes constatará que os indivíduos negros ou mulatos sofriam no Brasil uma dupla proibição, em termos sociais: o acesso a papéis sociais que pressupunham regalias e direito lhes era simultaneamente vedado pela ‘condição social’ e pela ‘cor’. Estas considerações levarão Florestan Fernandes a empreender uma crítica fulminante à “democracia racial” de Gilberto Freyre:
Depois de praticamente quatro séculos de escravatura, de contínua e retirada metamorfose do africano em escravo, do escravo em negro, do negro em braçal, diferente, outro, a tese da democracia racial soa como invenção, talvez bem-intencionada, talvez, cruel. Estabeleceu-se ‘com a abolição e a proclamação da República as preliminares da tese da harmonia das raças, paz social entre negros e brancos, cordialidade submissa do brasileiro. Estabelecia que o negro não tem problemas no Brasil, já que houve a revogação do estatuto servil, que as oportunidades de acumulação de riqueza, conquista de prestígio social e poder estão abertas a todos. Engendrou-se, assim, um dos grandes mitos de nossos tempos: o mito da democracia racial brasileira .
Assim como Fernandes, o grupo revisionista às pesquisas de Freyre procurou denunciar a violência no cativeiro, e também, abordar a reação dos cativos. Esta última aparece “apenas como rebeldia, uma espécie de reação do cativo à severidade dos castigos e da exploração econômica num sistema que o tinha como mercadoria” . Para os revisionistas o escravo no período colonial será reduzido à condição de “coisa”: É a decretação da impotência do escravo de tornar-se agente transformador da sociedade. Entretanto, a coisificação do escravo será um dos temas mais criticados pelas pesquisas historiográficas mais recentes. Neste sentido, Fernando Henrique Cardoso, por exemplo, defende que o cativo legalmente equiparado a uma mercadoria poderia chegar até à coisificação subjetiva, isto é, a sua autoconcepção como a negação da própria vontade de libertação; sua auto-representação como não-homem .
Se a proposta de Freyre, na década de 1930 foi mostrar a docilidade brasileira em suas relações sócio-culturais, o grupo de Florestan Fernandes procurará discursivamente construir outra versão para a história brasileira. O objetivo do grupo Florestan Fernandes, apoiados teoricamente no marxismo, será mostrar a degradação (a ruína) do negro brasileiro sofrida pelas interferências do homem branco. Uma obra, que se tornou exemplo para esta versão da história, foi o Livro de Fernando Henrique Cardoso, “Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional: o negro na sociedade escravista do Rio Grande do Sul” .
O objetivo desta obra de Fernandes H. Cardoso foi apontar primeiramente, como se construiu um mundo idílico nos pampas gaúcho, apoiado nos ideais de uma “democracia rural” na Região Sul do país; em segundo lugar, a obra vai demonstrar o contrário, apontando como nas estanciarias e charquearias o negro também foi injustiçado e sofreu todo tipo de violência física e psíquica que contribuiu para sua despersonalização humana.

Conclusão
As pesquisas difundidas pelos intelectuais revisionistas da obra de Freyre pautaram-se numa operação historiográfica que buscou priorizar as questões sobre racismo e desigualdades sociais na sociedade brasileira. Apesar de ser uma discussão original para aquela época, por optarem por mostrar o lado sombrio da escravidão brasileira, o grupo de Florestan Fernandes se homogeneizou numa escrita enunciativa e discursiva, que, aos olhos de nosso tempo presente, vitimizou a história do negro escravo em nossa sociedade. Os espaços de negociações são quase inexistentes, o que aponta para uma história do poder unilateral dos senhores, diante dos escravos coisificados como defendeu Fernando Henrique Cardoso nos anos 60. Quanto à obra de Freyre, Casa Grande & senzala, é considerada por muitos críticos como o maior livro sobre a sociedade brasileira, posto que analisou as contribuições culturais dos três pilares sociais de nossa singularidade: o branco, o negro e o índio, por intermédio de um enredo inovador para o seu tempo, falando de culinária, de comida e de sexualidade. Se Freyre apagou as tensões sociais, foi porque ele era filho do passado escravista: um passado em que o Brasil era comandado por senhores de engenho, um passado de casas grandes e senzalas.

A História Nominalista Revelada: abriu-se a caixa de pandora e os enigmas foram decifrados

Por: José do Egito N. Pereira


“Em algum ponto perdido deste universo, cujo clarão se estende a inúmeros sistemas solares, houve um astro sobre o qual animais inteligentes inventaram o conhecimento. Foi o instante da maior mentira, da suprema arrogância da história universal”.

Nietzsche


Resumo

O objetivo deste trabalho é demonstrar como a escrita da história, nas últimas décadas do século passado, passou por profundas mudanças epistemológicas, envolvendo discussões que deram prioridade a questionamentos no campo do conhecimento histórico. Tais discussões passaram a problematizar as percepções metanarrativas sobre a história, isto é, sobre as linearidades de um possível “processo histórico”. A noção da própria história passou a ser colocada sob dúvidas, negada; além de negarem a História, certos autores também passaram a desconfiar das verdades em história. Historiadores como Michel Foucault, Paul Veyne e Michel de Certeau, cada um a sua maneira, sob as vestes de um nominalismo, revolucionaram os olhares na operação historiográfica, no tocante as vontades de verdade, ao campo da história e a relação entre passado e presente. Enfim, qual o grau de nossas certezas em história? Até que ponto a pesquisa histórica está isenta de nossas subjetividades? A “caixa da história” foi aberta: os “enigmas” foram decifrados.

Palavras-chave: História, verdade, passado-presente.
Na história da mitologia, Pandora foi uma linda mulher dada de presente aos homens pelos deuses gregos. A mulher trazia consigo uma Caixa que, em hipótese alguma deveria ser aberta. Entretanto, a curiosidade de Pandora infligiu o aviso e a Caixa foi aberta. Resultado: os homens perderam a inocência; a Caixa de Pandora revelou todos os males do mundo; os deuses se vingaram dos homens, e do amigo dos homens (Prometeu)! E no tocante à historiografia, como ilustrar este mito, trazendo para nossa proposta algumas discussões sobre o campo da história, da operação historiográfica, do real e da verdade em história? Neste caso, Clio, a Musa da história, substituirá Pandora nesta empreitada, e assumirá uma postura historiográfica atual que, ao abrir a “Caixa da história”, revelará quais as possibilidades e interesses dos conhecimentos discursivos em história; e, quais as relações entre passado e história. Enfim, a narrativa de Clio servirá a uma história da História ou a história das histórias?
Deixemos Clio abrir a Caixa para vermos o que as primeiras frestas nos mostrarão sobre os debates atuais no campo da história. Contudo Clio avisa: seu olhar sobre as perspectivas atuais da escrita da história tem uma máscara – uma mácara nominalista, profundamente marcada pelos traços de Michel Foucault, Paul Veyne e Michel de Certeau.
A história encontra-se decifrada: perdera sua ingenuidade quanto a teleologia linear do “processo histórico”, cujos objetivos eram o Progresso (Comte), o Absoluto (Hegel) ou a Sociedade Comunista (Marx). Hoje, as filosofias da história e suas metanarrativas são vistas com desconfiança pelas teses Pós-Estruturalistas e Pós-modernas da história . De acordo com estas correntes (híbridas), a Sociedade Ocidental nas décadas mais recentes, passou por uma mudança de era Moderna para “Pós-moderna”, que se caracteriza pelo repúdio final da herança da Ilustração, particularmente da crença na “razão” e no “progresso”, e por uma insistente incredulidade nas grandes metanarrativas, que imporiam direção e sentido à história . Questiona-se a história, como também, a natureza do conhecimento com a dissolução da idéia de verdade, além de problemas de legitimação em vários campos .
A história é vista, atualmente, no círculo dos discursos, das relações entre poderes e saberes que estão distribuídos (entre o visível e o dizível) nas mais diversas ramificações sociais . A história passa a ser almejada para “rachar” os discursos de continuidades, os sistemas permanentes, os blocos homogêneos, as uniformidades. Foucault, ao prefaciar o livro de Gilles Deleuze e Félix Guattari- “Anti- Édipo”, escreveu: “preferi o que é positivo e múltiplo, a diferença à uniformidade, os fluxos às unidades, os agenciamentos móveis aos sistemas .
Por falar em sistemas, Foucault de forma alguma se traduz num filósofo sistemático. No entendimento de Rorty, os filósofos estão distribuídos em dois grupos: sistemáticos ou edificantes. O grupo dos filósofos sistemáticos, como os grandes cientistas, constrói para a eternidade; já o grupo dos filósofos edificantes (ao qual, Rorty inclui Foucault) destrói para o bem de sua própria geração . Depois da filosofia de Foucault, os críticos passaram a perguntar: há algo de novo debaixo do Sol? Foucault revolucionou a escrita da história ao defender que a realidade é aquilo que cada época assim o definiu como verdade:


Com Foucault, aprendi que nada pode ser visto como natural, justo, verdadeiro, belo, desde sempre. As formas que os objetos históricos adquirem só podem ser explicadas pela própria história. É vasculhando as camadas constitutivas de um dado saber, de um dado acontecimento, de um dado fato, que podemos apreender o movimento de seu aparecimento, aproximarmos do momento em que foi ganhando consistência, visibilidade e dizibilidade, foi emergindo como as duras conchas emergem do trabalho lento de petrificação do lamaçal do mangue .

Foucault se transformou num bárbaro, num Átila da história, a rir e a minar o terreno dos historiadores devastado pela poeira dos fatos . Depois do grito de Foucault, muitos historiadores ficaram a “malhar em ferro frio”. Para Jacques Revel, a obra que talvez tenha marcado mais profundamente os historiadores franceses desde a década de 1960 não foi a de seus pares, mas a de um filósofo: Michel Foucault.
Uma das grandes temáticas que envolvem o ofício do historiador refere-se à questão de como se poderia chegar à verdade. Esta questão já é antiga na história da filosofia (de Platão a Górgias, de Descartes a Hume) , e no que concerne a escrita da história existem, também, posições diversas. Quais as condições de verdade em história? Eis a questão! Vários historiadores, principalmente aqueles ligados à concepção tradicional da história dita-Positivista , acreditavam que através da análise “cientificamente” dos fatos poder-se-ia desvendar os enigmas e a verdade em história, afinal, os fatos falavam por si. O paradigma dos historiadores tradicionais ignorava os recortes que os artesãos da história faziam, quando da escolha dos objetos históricos.
Em análise contrária à versão “positivista” da verdade em história, Nietzsche concluiu que à vontade de verdade é a crença que funda a ciência, de que nada é mais necessário do que o verdadeiro. Necessidade não de que algo seja verdadeiro, mas de que seja tido como verdadeiro . Mas, e quanto à atualidade? O que diz as discussões historiográficas sobre as questões que buscam por verdades?


Quanto aos historiadores, atualmente eles já se dizem cansados de discutí-las e, sem vencerem as oporia que não vêem como produtivas, preferem, sob a influência dos Annales, e de Foucault, rejeitar essa discussão. Na Arqueologia do saber, Foucault afirma que a história pós 1960 afastou-se da filosofia e de questões sobre si mesma: nacionalidade e teleologia do devir, relatividade do saber histórico, possibilidade de descobrir ou de construir um sentido para o passado e para o inacabado presente futuro, verdade do conhecimento histórico, etc. .


Destarte, percebe-se que dentre uma gama de historiadores, não se almeja mais desvendar a verdade da “História”. Muito pelo contrário, questiona-se a existência de uma “História”, de suas leis. Para a tendência nominalista da história, o conhecimento pode ser compreendido como discurso ou representação sobre uma determinada realidade. A representação não é uma cópia do real, sua imagem perfeita, espécie de reflexo; mas uma construção feita a partir dele. . Portanto, uma representação em escrita da história, a exemplo de “O Retorno de Martin Guerre”, que se destina a ser uma ficção, uma intriga, sobre a vida de sujeitos que viveram no século XVI, pode ser interpretada como uma representação de uma outra representação (os documentos) de um “real” -passado .
Quando uma representação preenche uma ausência (o real) isto não significa que esta representação se transforma numa categoria objetiva sobre o não-dizível (real). Destarte, a representação se transforma, ao nomear uma ausência, num discurso sobre o não-dito (um significante sem significado). E o que é um discurso? Segundo a perspectiva foucaultiana, o discurso é uma prática que forma sistematicamente os objetos de que se fala .
Pressupõe-se, assim, que o conhecimento (discurso, verdade, representação...) não passa de uma invenção humana que utiliza às verdades históricas para organizar o caos (o mundo), e dinamizar a vontade de poder (ou vontade de potência), necessidade indissociável do homem. Outrossim, entendemos que o conhecimento que aplicamos sobre as coisas não pode ser visto como uma necessidade natural do ser humano, mas, uma relação de violência, de dominação, de poder e de força, de violação para com o nosso mundo caótico, sem lei e sem ordem. Vejam o que escreveu Foucault sobre a verdade difundida pelo conhecimento humano, no tocante ao mundo:


É contra um mundo sem ordem, sem encadeamento, sem forma, sem beleza, sem sabedoria, sem harmonia, sem lei, que o conhecimento tem de lutar... Não há nada no conhecimento que o habilite, por um direito qualquer, a conhecer o mundo. Não é natural a natureza a ser conhecida .


E para satirizar aqueles que acreditam na verdade, alcançada por intermédio do conhecimento, Foucault (2003, p.13) utiliza-se de Nietzsche, ou melhor, de sua “maldade” sobre as pretensões das essências metafísicas humanas, da seguinte forma:

Em algum ponto perdido deste universo, cujo clarão se entende a inúmeros sistemas solares, houve, uma vez, um astro sobre o qual animais inteligentes inventaram o conhecimento. Foi o instante da maior mentira, da suprema arrogância da história universal .


O objetivo dessas questões não é levantar verdades metafísicas, mas construir inúmeros discursos sobre o mundo social. Ou seja, se o real não pode ser alcançado, pelo menos, a partir de questões do nosso presente, pode-se construí-lo ou reconstruí-lo, de acordo com os diversos olhares em história. Segundo Albuquerque Jr, Foucault tem a coragem de afirmar que a história é um saber perspectivo, ou seja, que as narrativas que fazemos de um dado acontecimento tem a nossa própria participação . Afinal, o conhecimento histórico está ligado à época de sua produção; ao presente do historiador, que é sempre novo. Se o presente é sempre novo, a verdade do passado será sempre nova, pois dominada pela novidade do presente .
Para Reis, a história é uma construção do sujeito- ele reconstrói o passado, atribui-lhe um sentido sob a influência de suas crenças, convicções, idéias e personalidades . Nesse sentido, percebemos que a história é um constructo produzido pela subjetividade do historiador, que todo ponto de análise é relativo, e sempre se pretende verdadeiro quando está em confronto com outros pontos. Os discursos históricos usam sempre a mesma retórica: a distinção entre o falso e o verdadeiro.
A busca pela verdade, apesar de ser algo já bastante debatido pela crítica pós-estruturalista e nominalista, ainda continua sendo uma das grandes polêmicas que rodeia o campo da história. Nestes entraves, destacam-se os debates entre os historiadores do grupo realista versus os historiadores do grupo nominalista. Os realistas (Ranke, Comte, Ricoeur), são aqueles que acreditam que, apesar de submetido a condições subjetivas, o real pode ser reconstruído em si, em sua “realidade positiva”. Retorna-se a idéia metafísica da possibilidade da coincidência entre discurso e ser .
Quanto ao outro grupo:

Os “nominalistas” não crêem nessa possibilidade de se tocar o real em si. Todo discurso seria uma construção subjetiva sobre o real. O real é “nomeado” pelo sujeito, que passa a operar com esse real construído. A verdade é instituída por uma subjetividade. O discurso refere-se ao seu objeto, mas jamais coincide com ele; e nem... Pretende isso .

E você, o que acha de tudo isso? Se a história não resgata o real do passado - porque o historiador escreve a partir de um tempo presente-, então para que serve a história? Qual o seu valor social? O que é a história? O que é a história na teoria e na prática? Como poderemos chegar a uma definição de história?
Keith Jenkins, em “A História Repensada”, deu-nos uma definição de história, cética e irônica. Mas, uma definição que fora construída metodologicamente.
Primeiramente, Jenkins, se propôs a discutir história, em termo de teoria, e para isso, utilizou-se de dois argumentos.
O primeiro argumento utilizado foi:

Que a história constitui um dentre uma série de discursos a respeito do mundo. Embora esses discursos não criem o mundo... Eles se apropriam do mundo e lhe dão todos os significados que tem. O pedacinho do mundo que é o objeto (pretendido) de investigação da história é o passado .

O que podemos entender desta citação? É que o mundo é examinado não apenas pelo discurso histórico, mas, vários discursos, como por exemplo, a sociologia, a geografia, etc. criam seus entendimentos a respeito do mesmo mundo, ou de uma mesma cena, paisagem, abordados pelo saber do historiador.
Percorrendo o pensamento de Jenkins, logo percebemos os “Raios X” que ela faz dentro do campo da história. Jenkins fala que a disciplina história é constituída por vários discursos a respeito do passado. Fala também que as fissuras foram inevitáveis. Mas, o que é o discurso para nossa historiadora? O discurso é aquilo que se apropria do passado do mundo, e lhe dá um significado.
A partir desta discussão, a problemática História–passado começa a problematizar-se: Afinal, história e passado não são categorias diferentes? Jenkins mostra-nos que o passado e a história não estão unidos; que eles estão livres um do outro; e que, aquele que entender a heterogeneidade entre passado e história (presente), com toda certeza chegará a uma conclusão do que é a história na teoria.
Vejamos: Por que é importante entender a distinção entre história e passado? Ora, o passado já aconteceu; e a história é aquilo que os historiadores fazem com ele, quando põem mãos à obra. Afinal, para Jenkins, a história é um constructo lingüístico intertextual; é uma construção lingüística a partir de “documentos” e de textos. Devemos polemizar, no entanto, mostrando que essa construção lingüística não abarca a História, ou seja, o “todo”, o “global”; que existem lacunas e exclusões, que a história é descontínua.
Acho que devemos compreender, que cada cientista social apresenta sua maneira própria a partir do seu lugar de pesquisa para ler e falar sobre um dado objeto. E isto é discurso. Discurso este, que pode gerar diferentes interpretações no tempo e no espaço. Enfim, o que se deve observar é que o mundo e o passado são construídos por meio de narrativas, que por sua vez, constituem o real, ou seja, a realidade.
No tocante ainda à teoria, Jenkins nos apresenta o segundo argumento, referente à conciliação entre história e passado: “Dada à distinção entre passado e história, o problema para o historiador que de algum modo quer captar o passado em seu discurso histórico torna-se este: Como se conciliam aquelas duas coisas” .
Segundo nossa “autora”, essa questão pode ser problematizada em três níveis: Epistemologia, Ideologia e Metodologia. No campo da Epistemologia, a pergunta que se faz é esta: “Qual o conhecimento mais adequado para se conhecer o passado?” “Como conhecer algo que está ausente?”
Hoje, as pretensões de se chegar à verdade sobre o passado são vistas com desconfianças. O que está em jogo é:

Como histórias específicas vieram a ser elaboradas segundo um e não outro molde, em termos não só epistemológicos, mas também métodos lógicos e ideológicos? Nesse ponto, o que é possível saber e como é possível saber interagem com o poder .

O que Jenkins tenta nos passar, é que nenhum historiador consegue abarcar o passado em sua totalidade; nenhum relato consegue recuperar o passado tal qual ele era; a história é um constructo pessoal do historiador (o passado conhecido é um artefato nosso); e, sabemos mais sobre o passado do que as pessoas que viveram lá: o historiador descobre o esquecido e reconstrói o não percebível, cada um a sua maneira. Ora! Se a história constituísse um discurso objetivo, então, por que existir tantas interpretações diferentes sobre um mesmo objeto-passado?
Quanto à questão metodológica, o que Jenkins argumenta é que alguns historiadores buscam nos métodos um “elo” de encontro com a objetividade, com a verdade. Mas, para ela, é a Ideologia quem determina nossas escolhas, nossas verdades, posto que a ideologia encontra-se não apenas nos aparelhos estatais, mas, em todos os seguimentos sociais. “É enganoso falar do método como caminho para a verdade” . É a Ideologia quem institui escolhas. A história, nesta perspectiva constituiu-se num campo de legitimação de relações de poder. “A história nunca se basta; ela é sempre destinada a alguém” . Daí ser a história um campo em litígio: “A história se forja em tal conflito, e está claro que essas necessidades conflitantes incidem sobre os debates (ou seja, a luta pela posse) do que é a história” .
E quanto à definição da história? Para nossa proposta, a história é o lugar em que os valores (“verdades”) socioculturais são discursivamente apresentados como naturais, como essências ontologicamente apreendidas. Porém, Keith Jenkins (2001, p.52), também tem a sua definição de história:

A história é um discurso cambiante e problemático, que tem como pretexto um aspecto do mundo, o passado, que é produzido por um grupo de trabalhadores cuja cabeça está no presente... que tocam seu ofício de maneiras reconhecíveis uns para os outros... e cujos produtos, uma vez colocado em circulação, vêem-se sujeitos a uma séries de usos e abusos que são teoricamente infinitos, mas que na realidade corresponde a uma gama de bases de poder que... Estruturam e distribuem ao longo de um espectro do tipo dominantes/marginais os significados das histórias produzidas .

Expostas estas considerações sobre a relação da história com o conhecimento e também com a verdade, resta-nos ainda uma discussão que envolve o campo da história.Vejamos o que diz Paul Veyne em “Como se escreve a história”:


O Campo da história é, pois, inteiramente indeterminado, com uma única exceção: é preciso que tudo o que nele se inclua tenha, realmente, acontecido. Quanto ao resto, que a textura do campo seja cerrada ou rala, completa ou lacunar, não importa .

Vamos discutir esta citação? Nestas palavras, Veyne aborda que tudo pode ser histórico, que só não é história o que não aconteceu; que a história é escrita a partir das indagações do historiador (subjetividade); que o historiador escreve somente aquilo que lhe interessa; daí a existência de lacunas temporais em que não se vê historicidades. Esta ausência de historicidade é o que Veyne chama de não-factual, isto é,os eventos, ainda não consagrados como tais. Deste modo, podemos concluir que a história não é a descrição de toda uma historicidade, mas, aquilo que podemos saber – a partir de nossas escolhas – sobre ela. Daí ser a história um tecido incoerente, em que, alguns objetos são exaustivamente abordados, enquanto que outros não recebem o mesmo tratamento.


Um século é um branco nas nossas fontes, e o leitor mal sente a lacuna. O historiador pode dedicar dez páginas a um só dia e comprimir dez anos em duas linhas: O leitor confiará nele, como um bom romancista, e julgará que esses dez anos são vazios de eventos .

O que se deve entender em Veyne, é que a história é escrita a partir de subjetividades, a partir do interesse, a partir das fontes que chegam e que movem as indagações do historiador. Não existe uma lei geral que proíba aos fatos sociais sua historicidade. A história não definiu seus limites, seu paradigma (modelo). O historiador pode invadir todas as zonas do social. E, se tudo pode ser histórico, “logo a história não existe”.
Segundo Pesavento, a posição assumida pelo historiador francês foi verdadeiramente iconoclasta: a história para Veyne constitui-se numa narrativa verídica, como relato do que ocorrera um dia. Enquanto discurso, a história é capaz de fazer reviver o vivido, mas não mais que o romance. A ficção atingiu os domínios de Clio pela fala autorizada de um historiador .

Exposta esta questão, e para concluir nossa abordagem, resta-nos, ainda, uma última temática. Como se dá a operação historiográfica? O grande teórico que discutiu, e permanece atual a esta questão, foi o francês Michel de Certeau que seguiu uma orientação neonietzscheana de Foucault, ao mostrar que todo historiador seleciona, constrói, defende posições e interesses, propõe e reproduz um regime de verdade que é o do seu lugar social, a instituição a qual pertence .
Certeau, definitivamente, decifra o enigma da operação historiográfica. Ele nos mostra como toda subjetividade esconde dos leigos, o poder da instituição que a cerca, que impõe regras, métodos, objetos. É isso mesmo, o historiador, como qualquer outro profissional, tem a sua subjetividade constituída, a partir de um lugar fechado, isto é, a partir da instituição que lhe abarca, ou melhor, a qual ele (o historiador) está subordinado.
Michel de Certeau (1982, p.66) sintetiza a descrição de como procede a operação historiográfica da seguinte forma:

Encarar a história como uma operação será tentar, de maneira necessariamente limitada, compreendê-la como a relação entre um lugar (um recrutamento, um meio, uma profissão, etc.) procedimentos de análise (uma disciplina) e a construção de um texto (uma literatura). Apropria-se da realidade.É admitir que ela faz parte da “realidade” da qual trata, e que essa realidade pode ser apropriada “enquanto atividade humana”, “enquanto prática” .

Certeau procura mostrar que a operação histórica se refere à combinação de um lugar social, de práticas ‘científicas’ e de uma escrita. Resumindo: para escrever sobre um dado objeto, o historiador precisa estar vinculado a um lugar histórico, uma instituição. É essa instituição quem determina como escrever, qual o método utilizar, e qual objeto pesquisar. Essa instituição é o não-dito, para Certeau; é ela quem vai determinar como se dará a prática historiográfica – a técnica, a disciplina. Quanto à escrita, ela se constitui num agente que ressuscita o passado para matá-lo outra vez. Isto é, o morto, “o passado”, é resgatado de acordo com a nossa interpretação. Neste sentido, a escrita coloniza o morto; ela institui a ele um fim.
A escrita pode pôr um fim, encerrar o passado, contudo, esse passado estará sempre aberto a novas pesquisas. Afinal o passado não é um dado, ele é algo criado. De resíduos de papéis, de legumes, até mesmo de geleiras e das neves eternas o historiador faz outra coisa: faz deles história. Artificializa a natureza . A partir desta “revelação”, se segue outra questão: como conhecer o posicionamento do historiador na operação historiográfica? Seu próprio discurso deve revelá-lo .
Quanto à objetividade, Certeau descarta o dado ou o natural na escrita do historiador. Quando o historiador supõe que um passado já dado se desvenda no seu texto, ele se alinha com o comportamento do consumidor. Recebe passivamente os objetos distribuídos pelos produtores . Das teses de Certeau podemos concluir que, o passado em história não é um dado, mas um produto; um produto que dá lugar à morte (o passado) no meio dos vivos. Porém, o morto passa pelo crivo da escrita, que exorciza o passado para depois assassiná-lo como meio de estabelecer um lugar para os vivos.
Em história a escrita representa o papel de um rito de sepultamento: ela exorciza a morte introduzindo-a no discurso; ela não fala do passado senão para enterrá-lo num livro; ela é um túmulo no duplo sentido de que, através do mesmo texto, ela honra e elimina. Enfim, a escrita faz mortos para que os vivos existam .
A caixa de Clio está aberta: dentro da caixa não se viu males, muito pelo contrário, se viu a vida, fazendo-se e refazendo-se pelos discursos e representações históricas. A história não se deve prestar à tirania da VERDADE, mas a escrita de nossos desejos, de nossas vontades, de nossos regimes temporais de verdades que podem significar o bem ou o mal, já que somos humanos e dionisiacamente (seguindo a voz de Nietzsche), estamos para além do bem e do mal. A escrita da história segue o rumo de nossos desejos, de nossas vontades; não estamos fora da história, somos a história sem a demagogia das neutralidades: somos subjetividades que constroem versões para nossas realidades.
Teóricos como P. Veyne, M. Foucault e M. de Certeau, desconstruíram as certezas da “ciência história”.
A “maldade” de seus escritos demoliu os alicerces da história realista. A partir deles, a história passou a ser repensada; as certezas históricas questionadas. A Caixa da história fora aberta e os enigmas da história (Clio) foram decifrados.