segunda-feira, 19 de abril de 2010

A História Nominalista Revelada: abriu-se a caixa de pandora e os enigmas foram decifrados

Por: José do Egito N. Pereira


“Em algum ponto perdido deste universo, cujo clarão se estende a inúmeros sistemas solares, houve um astro sobre o qual animais inteligentes inventaram o conhecimento. Foi o instante da maior mentira, da suprema arrogância da história universal”.

Nietzsche


Resumo

O objetivo deste trabalho é demonstrar como a escrita da história, nas últimas décadas do século passado, passou por profundas mudanças epistemológicas, envolvendo discussões que deram prioridade a questionamentos no campo do conhecimento histórico. Tais discussões passaram a problematizar as percepções metanarrativas sobre a história, isto é, sobre as linearidades de um possível “processo histórico”. A noção da própria história passou a ser colocada sob dúvidas, negada; além de negarem a História, certos autores também passaram a desconfiar das verdades em história. Historiadores como Michel Foucault, Paul Veyne e Michel de Certeau, cada um a sua maneira, sob as vestes de um nominalismo, revolucionaram os olhares na operação historiográfica, no tocante as vontades de verdade, ao campo da história e a relação entre passado e presente. Enfim, qual o grau de nossas certezas em história? Até que ponto a pesquisa histórica está isenta de nossas subjetividades? A “caixa da história” foi aberta: os “enigmas” foram decifrados.

Palavras-chave: História, verdade, passado-presente.
Na história da mitologia, Pandora foi uma linda mulher dada de presente aos homens pelos deuses gregos. A mulher trazia consigo uma Caixa que, em hipótese alguma deveria ser aberta. Entretanto, a curiosidade de Pandora infligiu o aviso e a Caixa foi aberta. Resultado: os homens perderam a inocência; a Caixa de Pandora revelou todos os males do mundo; os deuses se vingaram dos homens, e do amigo dos homens (Prometeu)! E no tocante à historiografia, como ilustrar este mito, trazendo para nossa proposta algumas discussões sobre o campo da história, da operação historiográfica, do real e da verdade em história? Neste caso, Clio, a Musa da história, substituirá Pandora nesta empreitada, e assumirá uma postura historiográfica atual que, ao abrir a “Caixa da história”, revelará quais as possibilidades e interesses dos conhecimentos discursivos em história; e, quais as relações entre passado e história. Enfim, a narrativa de Clio servirá a uma história da História ou a história das histórias?
Deixemos Clio abrir a Caixa para vermos o que as primeiras frestas nos mostrarão sobre os debates atuais no campo da história. Contudo Clio avisa: seu olhar sobre as perspectivas atuais da escrita da história tem uma máscara – uma mácara nominalista, profundamente marcada pelos traços de Michel Foucault, Paul Veyne e Michel de Certeau.
A história encontra-se decifrada: perdera sua ingenuidade quanto a teleologia linear do “processo histórico”, cujos objetivos eram o Progresso (Comte), o Absoluto (Hegel) ou a Sociedade Comunista (Marx). Hoje, as filosofias da história e suas metanarrativas são vistas com desconfiança pelas teses Pós-Estruturalistas e Pós-modernas da história . De acordo com estas correntes (híbridas), a Sociedade Ocidental nas décadas mais recentes, passou por uma mudança de era Moderna para “Pós-moderna”, que se caracteriza pelo repúdio final da herança da Ilustração, particularmente da crença na “razão” e no “progresso”, e por uma insistente incredulidade nas grandes metanarrativas, que imporiam direção e sentido à história . Questiona-se a história, como também, a natureza do conhecimento com a dissolução da idéia de verdade, além de problemas de legitimação em vários campos .
A história é vista, atualmente, no círculo dos discursos, das relações entre poderes e saberes que estão distribuídos (entre o visível e o dizível) nas mais diversas ramificações sociais . A história passa a ser almejada para “rachar” os discursos de continuidades, os sistemas permanentes, os blocos homogêneos, as uniformidades. Foucault, ao prefaciar o livro de Gilles Deleuze e Félix Guattari- “Anti- Édipo”, escreveu: “preferi o que é positivo e múltiplo, a diferença à uniformidade, os fluxos às unidades, os agenciamentos móveis aos sistemas .
Por falar em sistemas, Foucault de forma alguma se traduz num filósofo sistemático. No entendimento de Rorty, os filósofos estão distribuídos em dois grupos: sistemáticos ou edificantes. O grupo dos filósofos sistemáticos, como os grandes cientistas, constrói para a eternidade; já o grupo dos filósofos edificantes (ao qual, Rorty inclui Foucault) destrói para o bem de sua própria geração . Depois da filosofia de Foucault, os críticos passaram a perguntar: há algo de novo debaixo do Sol? Foucault revolucionou a escrita da história ao defender que a realidade é aquilo que cada época assim o definiu como verdade:


Com Foucault, aprendi que nada pode ser visto como natural, justo, verdadeiro, belo, desde sempre. As formas que os objetos históricos adquirem só podem ser explicadas pela própria história. É vasculhando as camadas constitutivas de um dado saber, de um dado acontecimento, de um dado fato, que podemos apreender o movimento de seu aparecimento, aproximarmos do momento em que foi ganhando consistência, visibilidade e dizibilidade, foi emergindo como as duras conchas emergem do trabalho lento de petrificação do lamaçal do mangue .

Foucault se transformou num bárbaro, num Átila da história, a rir e a minar o terreno dos historiadores devastado pela poeira dos fatos . Depois do grito de Foucault, muitos historiadores ficaram a “malhar em ferro frio”. Para Jacques Revel, a obra que talvez tenha marcado mais profundamente os historiadores franceses desde a década de 1960 não foi a de seus pares, mas a de um filósofo: Michel Foucault.
Uma das grandes temáticas que envolvem o ofício do historiador refere-se à questão de como se poderia chegar à verdade. Esta questão já é antiga na história da filosofia (de Platão a Górgias, de Descartes a Hume) , e no que concerne a escrita da história existem, também, posições diversas. Quais as condições de verdade em história? Eis a questão! Vários historiadores, principalmente aqueles ligados à concepção tradicional da história dita-Positivista , acreditavam que através da análise “cientificamente” dos fatos poder-se-ia desvendar os enigmas e a verdade em história, afinal, os fatos falavam por si. O paradigma dos historiadores tradicionais ignorava os recortes que os artesãos da história faziam, quando da escolha dos objetos históricos.
Em análise contrária à versão “positivista” da verdade em história, Nietzsche concluiu que à vontade de verdade é a crença que funda a ciência, de que nada é mais necessário do que o verdadeiro. Necessidade não de que algo seja verdadeiro, mas de que seja tido como verdadeiro . Mas, e quanto à atualidade? O que diz as discussões historiográficas sobre as questões que buscam por verdades?


Quanto aos historiadores, atualmente eles já se dizem cansados de discutí-las e, sem vencerem as oporia que não vêem como produtivas, preferem, sob a influência dos Annales, e de Foucault, rejeitar essa discussão. Na Arqueologia do saber, Foucault afirma que a história pós 1960 afastou-se da filosofia e de questões sobre si mesma: nacionalidade e teleologia do devir, relatividade do saber histórico, possibilidade de descobrir ou de construir um sentido para o passado e para o inacabado presente futuro, verdade do conhecimento histórico, etc. .


Destarte, percebe-se que dentre uma gama de historiadores, não se almeja mais desvendar a verdade da “História”. Muito pelo contrário, questiona-se a existência de uma “História”, de suas leis. Para a tendência nominalista da história, o conhecimento pode ser compreendido como discurso ou representação sobre uma determinada realidade. A representação não é uma cópia do real, sua imagem perfeita, espécie de reflexo; mas uma construção feita a partir dele. . Portanto, uma representação em escrita da história, a exemplo de “O Retorno de Martin Guerre”, que se destina a ser uma ficção, uma intriga, sobre a vida de sujeitos que viveram no século XVI, pode ser interpretada como uma representação de uma outra representação (os documentos) de um “real” -passado .
Quando uma representação preenche uma ausência (o real) isto não significa que esta representação se transforma numa categoria objetiva sobre o não-dizível (real). Destarte, a representação se transforma, ao nomear uma ausência, num discurso sobre o não-dito (um significante sem significado). E o que é um discurso? Segundo a perspectiva foucaultiana, o discurso é uma prática que forma sistematicamente os objetos de que se fala .
Pressupõe-se, assim, que o conhecimento (discurso, verdade, representação...) não passa de uma invenção humana que utiliza às verdades históricas para organizar o caos (o mundo), e dinamizar a vontade de poder (ou vontade de potência), necessidade indissociável do homem. Outrossim, entendemos que o conhecimento que aplicamos sobre as coisas não pode ser visto como uma necessidade natural do ser humano, mas, uma relação de violência, de dominação, de poder e de força, de violação para com o nosso mundo caótico, sem lei e sem ordem. Vejam o que escreveu Foucault sobre a verdade difundida pelo conhecimento humano, no tocante ao mundo:


É contra um mundo sem ordem, sem encadeamento, sem forma, sem beleza, sem sabedoria, sem harmonia, sem lei, que o conhecimento tem de lutar... Não há nada no conhecimento que o habilite, por um direito qualquer, a conhecer o mundo. Não é natural a natureza a ser conhecida .


E para satirizar aqueles que acreditam na verdade, alcançada por intermédio do conhecimento, Foucault (2003, p.13) utiliza-se de Nietzsche, ou melhor, de sua “maldade” sobre as pretensões das essências metafísicas humanas, da seguinte forma:

Em algum ponto perdido deste universo, cujo clarão se entende a inúmeros sistemas solares, houve, uma vez, um astro sobre o qual animais inteligentes inventaram o conhecimento. Foi o instante da maior mentira, da suprema arrogância da história universal .


O objetivo dessas questões não é levantar verdades metafísicas, mas construir inúmeros discursos sobre o mundo social. Ou seja, se o real não pode ser alcançado, pelo menos, a partir de questões do nosso presente, pode-se construí-lo ou reconstruí-lo, de acordo com os diversos olhares em história. Segundo Albuquerque Jr, Foucault tem a coragem de afirmar que a história é um saber perspectivo, ou seja, que as narrativas que fazemos de um dado acontecimento tem a nossa própria participação . Afinal, o conhecimento histórico está ligado à época de sua produção; ao presente do historiador, que é sempre novo. Se o presente é sempre novo, a verdade do passado será sempre nova, pois dominada pela novidade do presente .
Para Reis, a história é uma construção do sujeito- ele reconstrói o passado, atribui-lhe um sentido sob a influência de suas crenças, convicções, idéias e personalidades . Nesse sentido, percebemos que a história é um constructo produzido pela subjetividade do historiador, que todo ponto de análise é relativo, e sempre se pretende verdadeiro quando está em confronto com outros pontos. Os discursos históricos usam sempre a mesma retórica: a distinção entre o falso e o verdadeiro.
A busca pela verdade, apesar de ser algo já bastante debatido pela crítica pós-estruturalista e nominalista, ainda continua sendo uma das grandes polêmicas que rodeia o campo da história. Nestes entraves, destacam-se os debates entre os historiadores do grupo realista versus os historiadores do grupo nominalista. Os realistas (Ranke, Comte, Ricoeur), são aqueles que acreditam que, apesar de submetido a condições subjetivas, o real pode ser reconstruído em si, em sua “realidade positiva”. Retorna-se a idéia metafísica da possibilidade da coincidência entre discurso e ser .
Quanto ao outro grupo:

Os “nominalistas” não crêem nessa possibilidade de se tocar o real em si. Todo discurso seria uma construção subjetiva sobre o real. O real é “nomeado” pelo sujeito, que passa a operar com esse real construído. A verdade é instituída por uma subjetividade. O discurso refere-se ao seu objeto, mas jamais coincide com ele; e nem... Pretende isso .

E você, o que acha de tudo isso? Se a história não resgata o real do passado - porque o historiador escreve a partir de um tempo presente-, então para que serve a história? Qual o seu valor social? O que é a história? O que é a história na teoria e na prática? Como poderemos chegar a uma definição de história?
Keith Jenkins, em “A História Repensada”, deu-nos uma definição de história, cética e irônica. Mas, uma definição que fora construída metodologicamente.
Primeiramente, Jenkins, se propôs a discutir história, em termo de teoria, e para isso, utilizou-se de dois argumentos.
O primeiro argumento utilizado foi:

Que a história constitui um dentre uma série de discursos a respeito do mundo. Embora esses discursos não criem o mundo... Eles se apropriam do mundo e lhe dão todos os significados que tem. O pedacinho do mundo que é o objeto (pretendido) de investigação da história é o passado .

O que podemos entender desta citação? É que o mundo é examinado não apenas pelo discurso histórico, mas, vários discursos, como por exemplo, a sociologia, a geografia, etc. criam seus entendimentos a respeito do mesmo mundo, ou de uma mesma cena, paisagem, abordados pelo saber do historiador.
Percorrendo o pensamento de Jenkins, logo percebemos os “Raios X” que ela faz dentro do campo da história. Jenkins fala que a disciplina história é constituída por vários discursos a respeito do passado. Fala também que as fissuras foram inevitáveis. Mas, o que é o discurso para nossa historiadora? O discurso é aquilo que se apropria do passado do mundo, e lhe dá um significado.
A partir desta discussão, a problemática História–passado começa a problematizar-se: Afinal, história e passado não são categorias diferentes? Jenkins mostra-nos que o passado e a história não estão unidos; que eles estão livres um do outro; e que, aquele que entender a heterogeneidade entre passado e história (presente), com toda certeza chegará a uma conclusão do que é a história na teoria.
Vejamos: Por que é importante entender a distinção entre história e passado? Ora, o passado já aconteceu; e a história é aquilo que os historiadores fazem com ele, quando põem mãos à obra. Afinal, para Jenkins, a história é um constructo lingüístico intertextual; é uma construção lingüística a partir de “documentos” e de textos. Devemos polemizar, no entanto, mostrando que essa construção lingüística não abarca a História, ou seja, o “todo”, o “global”; que existem lacunas e exclusões, que a história é descontínua.
Acho que devemos compreender, que cada cientista social apresenta sua maneira própria a partir do seu lugar de pesquisa para ler e falar sobre um dado objeto. E isto é discurso. Discurso este, que pode gerar diferentes interpretações no tempo e no espaço. Enfim, o que se deve observar é que o mundo e o passado são construídos por meio de narrativas, que por sua vez, constituem o real, ou seja, a realidade.
No tocante ainda à teoria, Jenkins nos apresenta o segundo argumento, referente à conciliação entre história e passado: “Dada à distinção entre passado e história, o problema para o historiador que de algum modo quer captar o passado em seu discurso histórico torna-se este: Como se conciliam aquelas duas coisas” .
Segundo nossa “autora”, essa questão pode ser problematizada em três níveis: Epistemologia, Ideologia e Metodologia. No campo da Epistemologia, a pergunta que se faz é esta: “Qual o conhecimento mais adequado para se conhecer o passado?” “Como conhecer algo que está ausente?”
Hoje, as pretensões de se chegar à verdade sobre o passado são vistas com desconfianças. O que está em jogo é:

Como histórias específicas vieram a ser elaboradas segundo um e não outro molde, em termos não só epistemológicos, mas também métodos lógicos e ideológicos? Nesse ponto, o que é possível saber e como é possível saber interagem com o poder .

O que Jenkins tenta nos passar, é que nenhum historiador consegue abarcar o passado em sua totalidade; nenhum relato consegue recuperar o passado tal qual ele era; a história é um constructo pessoal do historiador (o passado conhecido é um artefato nosso); e, sabemos mais sobre o passado do que as pessoas que viveram lá: o historiador descobre o esquecido e reconstrói o não percebível, cada um a sua maneira. Ora! Se a história constituísse um discurso objetivo, então, por que existir tantas interpretações diferentes sobre um mesmo objeto-passado?
Quanto à questão metodológica, o que Jenkins argumenta é que alguns historiadores buscam nos métodos um “elo” de encontro com a objetividade, com a verdade. Mas, para ela, é a Ideologia quem determina nossas escolhas, nossas verdades, posto que a ideologia encontra-se não apenas nos aparelhos estatais, mas, em todos os seguimentos sociais. “É enganoso falar do método como caminho para a verdade” . É a Ideologia quem institui escolhas. A história, nesta perspectiva constituiu-se num campo de legitimação de relações de poder. “A história nunca se basta; ela é sempre destinada a alguém” . Daí ser a história um campo em litígio: “A história se forja em tal conflito, e está claro que essas necessidades conflitantes incidem sobre os debates (ou seja, a luta pela posse) do que é a história” .
E quanto à definição da história? Para nossa proposta, a história é o lugar em que os valores (“verdades”) socioculturais são discursivamente apresentados como naturais, como essências ontologicamente apreendidas. Porém, Keith Jenkins (2001, p.52), também tem a sua definição de história:

A história é um discurso cambiante e problemático, que tem como pretexto um aspecto do mundo, o passado, que é produzido por um grupo de trabalhadores cuja cabeça está no presente... que tocam seu ofício de maneiras reconhecíveis uns para os outros... e cujos produtos, uma vez colocado em circulação, vêem-se sujeitos a uma séries de usos e abusos que são teoricamente infinitos, mas que na realidade corresponde a uma gama de bases de poder que... Estruturam e distribuem ao longo de um espectro do tipo dominantes/marginais os significados das histórias produzidas .

Expostas estas considerações sobre a relação da história com o conhecimento e também com a verdade, resta-nos ainda uma discussão que envolve o campo da história.Vejamos o que diz Paul Veyne em “Como se escreve a história”:


O Campo da história é, pois, inteiramente indeterminado, com uma única exceção: é preciso que tudo o que nele se inclua tenha, realmente, acontecido. Quanto ao resto, que a textura do campo seja cerrada ou rala, completa ou lacunar, não importa .

Vamos discutir esta citação? Nestas palavras, Veyne aborda que tudo pode ser histórico, que só não é história o que não aconteceu; que a história é escrita a partir das indagações do historiador (subjetividade); que o historiador escreve somente aquilo que lhe interessa; daí a existência de lacunas temporais em que não se vê historicidades. Esta ausência de historicidade é o que Veyne chama de não-factual, isto é,os eventos, ainda não consagrados como tais. Deste modo, podemos concluir que a história não é a descrição de toda uma historicidade, mas, aquilo que podemos saber – a partir de nossas escolhas – sobre ela. Daí ser a história um tecido incoerente, em que, alguns objetos são exaustivamente abordados, enquanto que outros não recebem o mesmo tratamento.


Um século é um branco nas nossas fontes, e o leitor mal sente a lacuna. O historiador pode dedicar dez páginas a um só dia e comprimir dez anos em duas linhas: O leitor confiará nele, como um bom romancista, e julgará que esses dez anos são vazios de eventos .

O que se deve entender em Veyne, é que a história é escrita a partir de subjetividades, a partir do interesse, a partir das fontes que chegam e que movem as indagações do historiador. Não existe uma lei geral que proíba aos fatos sociais sua historicidade. A história não definiu seus limites, seu paradigma (modelo). O historiador pode invadir todas as zonas do social. E, se tudo pode ser histórico, “logo a história não existe”.
Segundo Pesavento, a posição assumida pelo historiador francês foi verdadeiramente iconoclasta: a história para Veyne constitui-se numa narrativa verídica, como relato do que ocorrera um dia. Enquanto discurso, a história é capaz de fazer reviver o vivido, mas não mais que o romance. A ficção atingiu os domínios de Clio pela fala autorizada de um historiador .

Exposta esta questão, e para concluir nossa abordagem, resta-nos, ainda, uma última temática. Como se dá a operação historiográfica? O grande teórico que discutiu, e permanece atual a esta questão, foi o francês Michel de Certeau que seguiu uma orientação neonietzscheana de Foucault, ao mostrar que todo historiador seleciona, constrói, defende posições e interesses, propõe e reproduz um regime de verdade que é o do seu lugar social, a instituição a qual pertence .
Certeau, definitivamente, decifra o enigma da operação historiográfica. Ele nos mostra como toda subjetividade esconde dos leigos, o poder da instituição que a cerca, que impõe regras, métodos, objetos. É isso mesmo, o historiador, como qualquer outro profissional, tem a sua subjetividade constituída, a partir de um lugar fechado, isto é, a partir da instituição que lhe abarca, ou melhor, a qual ele (o historiador) está subordinado.
Michel de Certeau (1982, p.66) sintetiza a descrição de como procede a operação historiográfica da seguinte forma:

Encarar a história como uma operação será tentar, de maneira necessariamente limitada, compreendê-la como a relação entre um lugar (um recrutamento, um meio, uma profissão, etc.) procedimentos de análise (uma disciplina) e a construção de um texto (uma literatura). Apropria-se da realidade.É admitir que ela faz parte da “realidade” da qual trata, e que essa realidade pode ser apropriada “enquanto atividade humana”, “enquanto prática” .

Certeau procura mostrar que a operação histórica se refere à combinação de um lugar social, de práticas ‘científicas’ e de uma escrita. Resumindo: para escrever sobre um dado objeto, o historiador precisa estar vinculado a um lugar histórico, uma instituição. É essa instituição quem determina como escrever, qual o método utilizar, e qual objeto pesquisar. Essa instituição é o não-dito, para Certeau; é ela quem vai determinar como se dará a prática historiográfica – a técnica, a disciplina. Quanto à escrita, ela se constitui num agente que ressuscita o passado para matá-lo outra vez. Isto é, o morto, “o passado”, é resgatado de acordo com a nossa interpretação. Neste sentido, a escrita coloniza o morto; ela institui a ele um fim.
A escrita pode pôr um fim, encerrar o passado, contudo, esse passado estará sempre aberto a novas pesquisas. Afinal o passado não é um dado, ele é algo criado. De resíduos de papéis, de legumes, até mesmo de geleiras e das neves eternas o historiador faz outra coisa: faz deles história. Artificializa a natureza . A partir desta “revelação”, se segue outra questão: como conhecer o posicionamento do historiador na operação historiográfica? Seu próprio discurso deve revelá-lo .
Quanto à objetividade, Certeau descarta o dado ou o natural na escrita do historiador. Quando o historiador supõe que um passado já dado se desvenda no seu texto, ele se alinha com o comportamento do consumidor. Recebe passivamente os objetos distribuídos pelos produtores . Das teses de Certeau podemos concluir que, o passado em história não é um dado, mas um produto; um produto que dá lugar à morte (o passado) no meio dos vivos. Porém, o morto passa pelo crivo da escrita, que exorciza o passado para depois assassiná-lo como meio de estabelecer um lugar para os vivos.
Em história a escrita representa o papel de um rito de sepultamento: ela exorciza a morte introduzindo-a no discurso; ela não fala do passado senão para enterrá-lo num livro; ela é um túmulo no duplo sentido de que, através do mesmo texto, ela honra e elimina. Enfim, a escrita faz mortos para que os vivos existam .
A caixa de Clio está aberta: dentro da caixa não se viu males, muito pelo contrário, se viu a vida, fazendo-se e refazendo-se pelos discursos e representações históricas. A história não se deve prestar à tirania da VERDADE, mas a escrita de nossos desejos, de nossas vontades, de nossos regimes temporais de verdades que podem significar o bem ou o mal, já que somos humanos e dionisiacamente (seguindo a voz de Nietzsche), estamos para além do bem e do mal. A escrita da história segue o rumo de nossos desejos, de nossas vontades; não estamos fora da história, somos a história sem a demagogia das neutralidades: somos subjetividades que constroem versões para nossas realidades.
Teóricos como P. Veyne, M. Foucault e M. de Certeau, desconstruíram as certezas da “ciência história”.
A “maldade” de seus escritos demoliu os alicerces da história realista. A partir deles, a história passou a ser repensada; as certezas históricas questionadas. A Caixa da história fora aberta e os enigmas da história (Clio) foram decifrados.

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